domingo, 19 de maio de 2013

Amigos, amigos - arte à parte

 
Um quadro e três amigos de longa data. Um amigo mostra ao outro um quadro branco, uma tela toda em branco, que comprou por R$ 200.000,00. O amigo vê a tela e se angustia. Pinta o mal-estar entre eles. 
 
Este amigo que não suporta olhar para o quadro em branco e suporta menos ainda o amigo ter adquirido esta obra de "arte" vai até o terceiro amigo contar a novidade do investimento absurdo do amigo numa obra que nada tem de arte e que não vale nada.

O que teria acontecido com o velho amigo deles que parecia não ter perdido o senso crítico? Nem parecia ter perdido a razão? Qual seria seu propósito com a compra do quadro? E por que esse quadro? 
 
O que teria deixado o amigo tão incomodado naquele quadro?

O terceiro amigo que tenta ficar neutro na história, na briguinha aparentemente sem pé nem cabeça dos dois amigos queridos, acaba entrando no acerto de contas deles para evitar o pior: o fim da amizade de longos anos. Embora ele pergunte: "por que ainda nos vemos se nos odiamos?"

Os dois amigos se calam. Ficam constrangidos. Ou aliviados? Seria então o momento de pôr um ponto final na relação? O amigo, o terceiro, pede aos dois uma trégua, dizendo-lhes que não suportaria a ausência deles no dia do seu casamento porque a presença deles, de seus amigos queridos, seria a sua felicidade.
 
A peça "Arte", de Yasmina Reza, autora de "Deus da Carnificina", aborda um momento de tensão entre velhos amigos. Mostra de que matéria se fazem as amizades. Em algum momento, ainda que digamos eu te amo, porque amamos mesmo, de verdade, o eu te amo parece não ser suficiente.
 
O gostar de gostar de você é um desafio numa amizade, pois posso te amar - e te amo - mas posso não gostar mais de gostar de você. Ainda que eu te ame, não gosto mais de gostar de você, porque se tornou sofrível gostar de você, embora eu te ame. É o momento do desprazer numa amizade.
 
Mas o que o amigo fez? Nada. O "nada" do outro, o "nada" que o outro fez, o "nada" da vida do outro, o "nada" que o outro se tornou, “o nada” que nega o que representa “o tudo” traz desconforto. O nada do outro que nega o meu tudo me incomoda. E também incomoda o outro o meu tudo. O nada do outro e o meu tudo são o nosso confronto. É o momento numa amizade em que “o nada” e “o tudo” se chocam. Não se completam. Não se somam.

O quadro do amigo que não tem “nada” de arte desencadeia no outro um mal-estar que traz à tona o ressentimento guardado há anos. Um ressentimento comum. O ressentimento que ambos fingiram não existir. E existindo foi deixando suas marcas em cada um. Veio à tona com um simples quadro em branco que não lhes dizia "nada". O que o amigo dele lhe fez? Nada, só comprou um quadro. Em branco.
 
Ressentimos com "o nada". Ressentimos até com o sucesso vazio de um amigo. Ressentimos quando um amigo fica fora do enquadramento que lhe damos. Fingimos naturalidade quando nos deparamos com uma conduta de um querido amigo que não se ajusta ao que esperamos dele.
 
Insatisfeitos, silenciamos o que supostamente não se pode dizer ao outro porque o que não se pode dizer desvela nosso ressentimento. O não-dito que se for dito poderá ferir um amigo ou poderá pôr fim à amizade é guardado. Mas cedo ou tarde, o não-dito é dito. Bem ou mal é dito.
 
E o que se pode dizer? E como dizer o que não se pode dizer?

Yasmina Reza trata dessa tensão, a partir de um quadro que suscita algo (um mal-estar) no outro, para além do racional, num texto em que o que se diz, e como se diz, parece comédia, mas não é. Ou será que é?
 
***

 
"Arte", de Yasmina Reza, com Vladimir Brichta, Marcelo Flores e Cláudio Gabriel.
Direção de Emílio de Mello. 



2 comentários:

  1. Interessante o texto da Márcia Tiburi que de certa forma conversa com este post. Ela fala do esteticamente correto: http://revistacult.uol.com.br/home/2013/05/esteticamente-correto/

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  2. Lendo o texto da Márcia Tiburi, lembrei que falei, por alto, sobre o esteticamente correto na sexualidade - estaríamos ordenando-nos numa sexualidade formal? http://balaiodavivi.blogspot.com.br/2010/10/sexualidade-formal.html

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