terça-feira, 31 de março de 2015

O coração feminino

 
Tenzin Palmo
 

Jetsunma Tenzin Palmo é uma monja budista tibetana, de 71 anos, de origem inglesa, que tem realizado diversas palestras sobre ensinamentos budistas pelo mundo, inclusive no Brasil. É autora do livro No Coração da Vida onde encontramos toda a sabedoria dessa filosofia milenar mesclada com a sensibilidade de uma mulher que é doce e, ao mesmo tempo, firme.

É com grande satisfação e uma ponta de orgulho que vejo uma mulher se tornar uma líder espiritual, fato particularmente raro nas religiões mais conhecidas, embora o budismo não seja considerado uma religião.

Sua fala não é direcionada diretamente às mulheres e sim a todos os seres, mas sinto que ela toca especialmente o coração feminino porque, naturalmente, as mulheres se identificam mais com o sofrimento alheio, a compaixão e a empatia - sentimentos ressaltados em seu livro. Em nossa ânsia por amor, também costumamos cultivar mais ilusões a respeito do amor romântico, o que nos leva, consequentemente, a frustrações nesse campo.

Em vários estudos que tratam sobre o tema da depressão, as estatísticas mostram que esse mal acomete mais mulheres que homens.

Creio que o ensinamento budista pode ser uma oportunidade interessante de aprendizado para nossa vida, à medida que aprendemos a escapar de certas armadilhas mentais e sentimentais que nos cercam em nossa vida cotidiana, aprendendo a lidar melhor com os sentimentos negativos que nos assaltam diariamente.

Sinto-me profundamente tocada quando escuto tão sábias palavras de uma mulher que conquistou o respeito e a admiração do mundo.
 
Assim, destaquei alguns temas abordados por Tenzin Palmo em entrevista a Gustavo Gitti.
 
***
 
Amor Romântico x Amor Genuíno
 
"A problemática do amor romântico é que sempre confundimos a ideia de amor com apego. Nós imaginamos que o apego e o agarramento que temos em nossas relações demonstram o quanto amamos, quando, na verdade, é só apego que nos causa dor. Quanto mais nos agarramos, mais temos medo de perder e, então, se perdermos, iremos fatalmente sofrer. O apego diz: 'Eu te amo, por isso quero que você me faça feliz'. O amor genuíno diz: 'Eu te amo e por isso quero que seja feliz. Se isso me inclui, ótimo! Se não me incluir, eu só quero a sua felicidade.' É, portanto, um sentimento bem diferente.
 
O apego é como segurar com bastante força e o amor genuíno é como segurar com delicadeza, nutrindo, porém deixando que as coisas fluam. É não manter o outro preso à força. Quanto mais agarramos o outro com força, mais nós sofremos. Entretanto, é muito difícil para as pessoas entenderem isso porque elas pensam que quanto mais elas se agarram a alguém, mais isso demonstra que elas se importam com o outro. Mas, não é isso.
 
Elas realmente estão apenas tentando prender algo porque elas têm medo de que, se não for assim, elas é que acabarão se ferindo. Qualquer tipo de relacionamento no qual imaginamos que poderemos ser preenchidos pelo outro será certamente muito complicado. Quero dizer que, idealmente, as pessoas deveriam se unir já se sentindo preenchidas por si mesmas e ficarem juntas apenas para apreciar isso no outro, em vez de esperar que o outro supra essa sensação de bem-estar que elas não têm sozinhas.
 
Isso gera muitos problemas que são agravados com a expectativa que vem da ideia do amor romântico, em que projetamos nossas ideias, ideais, desejos e fantasias românticas sobre o outro - algo que ele nunca será capaz de corresponder. Assim que começamos a conhecer o outro, reconhecemos que ele(a) não é o príncipe encantado nem a Cinderela. É apenas uma pessoa comum, também lutando. E a menos que sejamos capazes de enxergá-la, de gostar dela e de sentir desejo por ela, como ela é, além de ter bondade e compaixão por ela, será um relacionamento muito difícil."
 
Felicidade Genuína
 
"Não devemos confundir felicidade com prazer. A felicidade genuína não está condicionada aos prazeres circunstanciais e nem aos outros. Ela é um bem-estar incondicional, que surge de dentro da própria pessoa. A genuína felicidade surge quando a mente não se encontra deformada, ou seja, influenciada por pensamentos ou sentimentos negativos, como por exemplo, sentimentos de agressividade, frustração, ciúme, inveja, egoísmo, medo, arrogância etc. Esses sentimentos nos separam da felicidade genuína, embora nosso ego se sinta confortável com tais sentimentos. Por isso, somente por meio da dissolução do ego é que podemos alcançar essa felicidade e, para aqueles que realmente querem, a boa notícia é que tal transformação é possível."
 
Transformando a mente
 
"Transformar nossa mente é possível, mas é um tanto difícil! É preciso muita prática, dedicação, persistência e tempo. As emoções negativas não são inerentes ao ser humano, mas possuem raízes muito profundas em nossa mente. Podemos, pelo menos, tentar reduzi-las já que causam tanta dor a nós e a outras pessoas. Existem muitas técnicas e métodos que ensinam as pessoas a se tornarem mais calmas, mais centradas, mais presentes e de coração mais aberto. Ao mesmo tempo, é importante cultivarmos nossos sentimentos positivos como a generosidade, a paciência, a bondade e a compaixão. Esses sentimentos abrem nosso coração e nos fazem sentir melhor, livrando nossa mente da negatividade. Daí vai surgindo o sentimento de bondade genuína por todos os seres."
 
Compaixão e Sabedoria
 
"O que é o sentimento de compaixão? É, sobretudo, ter empatia com o sofrimento alheio, desejando sinceramente que o outro se torne livre do sofrimento que o atormenta. É também ter a habilidade de se colocar no lugar do outro, de imaginar como é ser a outra pessoa. Você sente o sofrimento do outro como se fosse seu e, se for possível, tentará removê-lo. O sentimento de piedade é nosso inimigo mais próximo e devemos evitá-lo. Sentir piedade é menosprezar o outro - Ah, que pena ser quem você é ou estar passando pelo que você passa! Este pensamento te afasta do outro, enquanto que na compaixão não há a distância. Seu coração está aberto para o outro. Nesse caso precisamos de sabedoria para equilibrar os sentimentos. Ela nos proporciona lidar adequadamente com o sentimento de compaixão não deixando que o sofrimento alheio nos deixe deprimidos ou nos atinja de forma incapacitante. A sabedoria nos dá compreensão para não nos apegarmos ao sofrimento do outro. Compaixão e sabedoria funcionam, assim, como as duas asas de um pássaro nos levando à libertação."
 
Libertação
 
"Nessa compreensão não há o envolvimento emocional. Na compreensão genuína há o reconhecimento de que, na condição humana, todos estamos, de alguma forma, propensos ao sofrimento por não utilizarmos todo o nosso potencial de iluminação. Em nossa busca desenfreada por sucesso, reconhecimento, realização e 'felicidade', nós criamos várias situações que nos causam dor e sofrimento, tanto a nós quanto aos outros. O motivo principal para sofrermos é que nossas mentes, além de serem muito distraídas, são muito estressadas e repletas de emoções negativas. Porém, podemos treinar nossas mentes para reconhecer que esses estados não fazem parte de nossa verdadeira natureza e, sim, são produtos criados por nossa mente em desequilíbrio. Assim, podemos eliminar a identificação com tais aspectos negativos. À medida que expandimos nossa mente, através da compaixão com sabedoria, vamos deixando a gaiola em que nossa mente permanece presa e limitada; e vamos percebendo nossa verdadeira natureza, quem realmente somos. A chave para a liberdade vem com a prática, com o treino mental."
 
Mundo Espiritual x Vida Mundana
 
"Não podemos dividir nossa vida entre mundo mundano e mundo espiritual. A grande oportunidade para a transformação mental se encontra em nosso cotidiano, quando estamos no trabalho com nosso grupo familiar e social e não somente quando estamos em uma igreja ou em um templo, rezando ou meditando. Mas como mesclar a espiritualidade com nossa vida na prática? Temos que transformar os acontecimentos da vida diária em experiência espiritual e reconhecer que há muitas qualidades espirituais em nosso coração que precisam ser desenvolvidas como a bondade, a compaixão, a paciência, a generosidade, e assim por diante, além da aspiração pela felicidade das outras pessoas. A conclusão é que, para praticar, precisamos conviver com os outros. Como poderemos nos transformar se não praticarmos uns com os outros? Como posso aprender a superação da raiva se não houver ninguém para me aborrecer? Seria muito fácil se você fosse praticar sozinho, isolado do mundo. No entanto, quando estamos diante de uma pessoa bem chata, irritante e desagradável, em vez de pensar que ela é um obstáculo para seu desenvolvimento espiritual, reconheça nela uma oportunidade. Como você poderá desenvolver sua paciência se não houver ninguém para te incomodar? Enxergue essas pessoas como um professor espiritual e não como seu inimigo. Elas foram enviadas para te ajudar a superar seus próprios desejos egoístas. Veja-as como uma oportunidade e agradeça. Isto vale também para as pessoas de sua família, com quem você tem que enfrentar esse desafio. Tente oferecer e desejar felicidade a essas pessoas. Tudo que acontece a você é uma oportunidade para sua prática espiritual. Se estiver muito esgotado, num meio de um turbilhão de acontecimentos ruins, tente voltar sua atenção para a sua respiração. Concentre-se nisso. Apenas traga sua consciência para o ato de respirar. Isso não toma tempo e te fará ficar no presente e centrado no agora."
 
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Vídeos:   aqui e aqui.
 
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Vânia Borel é economista e poeta (B. Horizonte)
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quinta-feira, 12 de março de 2015

Envelhecer é a melhor opção

Simone de Beauvoir
 
Falar sobre a mulher sempre me remete à Simone de Beauvoir que disse, no clássico O Segundo Sexo, "ninguém nasce mulher: torna-se mulher". Outra reflexão que, ainda em Simone, podemos encontrar é sobre a velhice: "A impressão que eu tenho é de não ter envelhecido, embora eu esteja instalada na velhice."

Absorver os sinais que o tempo vai, vagarosa e caprichosamente, imprimindo ao nosso corpo, se mostra cada vez mais difícil, numa sociedade em que o padrão de beleza se estabilizou nos 20 ou 30 anos de idade. Parece que somente a vida amorosa, profissional e cultural desta faixa etária encontra espaço na mídia. O que nos força, inconscientemente, a mitigar nossa realidade, a emprestar menos importância aos fatos cotidianos que nos cercam e a reputar menos digna de ser divulgada ou conhecida a nossa história.
 
O mundo do corpo perfeito, dos músculos cultivados com base numa dieta rígida e frequência espartana às academias, não valoriza o interior, as ideias, a experiência, que só adquirimos com a passagem do tempo.
 
A propósito, vivemos tempos voltados para mascarar a passagem do tempo. Dizem que uma mulher que revela sua própria idade é incapaz de guardar um segredo. Exageros à parte, não é difícil encontrar mulheres bonitas e bem sucedidas que mentem ou que se recusam a declarar sua idade.
 
Pode uma mulher que, a exemplo do criador, é capaz de gerar outra vida, que produz em seu seio o alimento que garante a sobrevivência de outro ser, dentre outras inúmeras características e qualidades que lhe asseguram a essência feminina, permitir que sua definição seja reduzida à "uma caixa maravilhosa cheia de nada ou de quase nada"?
 
O cuidado com o corpo é importante. Definitivamente, não pretendo fazer apologia ao sedentarismo. Ao contrário, sempre me exercitei. Está mais que provado que exercícios físicos fazem bem para o corpo, em termos estéticos, biológicos e, também, psicológicos. O que eu questiono é este culto ao corpo, essa veneração à forma. Ora, o corpo é só a embalagem, o invólucro - se estamos vazias por dentro, pra que caprichar tanto na aparência exterior?
 
Brigamos tanto por igualdade, até queimamos sutiã em praça pública por tão pouco?
 
É isso mesmo?
 
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Célia Cunha Mello é Procuradora do Estado (MG)
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terça-feira, 3 de março de 2015

Simone, a convidada

Simone de Beauvoir
 
"A mulher, como o homem,
é seu corpo, mas seu corpo
não é ela, é outra coisa"
(Simone de Beauvoir)
 
Como convidada, Simone de Beauvoir (Sandrine Kiberlain) entra na história de Violette Leduc (Emmanuelle Devos) no filme Violette de Martin Provost. E, por acaso, se dá o encontro de Violette com o romance de estreia de Beauvoir: L'Invitée (A Convidada - 1943).
 
Violette impressiona-se com a espessura de um livro, um objeto sobre a mesa na casa de um conhecido: "quem é essa Simone de Beauvoir que escreveu um livro tão grande?" E assim como acontecem os melhores encontros com os livros, A Convidada é descoberto pela curiosidade de Violette. A partir desse encontro com esta obra de Beauvoir, a sedutora Violette  forja um encontro com a escritora.
 
Não deixa de ser curiosa a troca de papéis entre escritora e personagem. Enquanto Xavière, no livro, é convidada para entrar na relação de um casal, um homem e uma mulher, Simone é convidada, no filme, para fazer parte de um outro triângulo amoroso: Violette, sua mãe e Simone. Após a leitura do manuscrito de L'Asphyxie (A asfixia), entregue por Violette, Simone aceita entrar na história em que Violette estava presa, como uma criança que não aprendeu salvar sua própria pele.

A asfixia (1946) é lançado pela Gallimard na Coleção Espoir, recém-criada por Albert Camus. O livro é elogiado por Cocteau. Simone lança, também pela Gallimard, O Segundo Sexo (1949), depois Os Mandarins (1954) com o qual ganhou o Prêmio Goncourt.
 
Ao longo do filme, Violette e Simone encontram-se e conversam sobre seus projetos. Simone revela a Violette que estava se dando conta da "montanha que precisava escalar" no livro que estava escrevendo sobre a condição feminina - ela se referia ao O Segundo Sexo.
 
De certo modo, temos essa impressão. Logo no Sumário, percebemos que estamos diante de uma montanha - menos pelo tamanho da obra (dois volumes), mais pela amplitude temática e pela forma de abordagem dos temas.
 
O primeiro volume Fatos e Mitos divide-se em Destino, História, Os Mitos e o segundo volume A experiência vivida, em Formação (Infância, que se inicia com a frase "ninguém nasce mulher: torna-se mulher", A jovem, A iniciação sexual, A lésbica), Situação (A mulher casada, A mãe, A vida social, Prostitutas e cortesãs, Da maturidade à velhice, Situação e caráter da mulher), Justificações (A narcisista, A apaixonada, A mística) e A caminho da libertação (A mulher independente). Entre os dois volumes, a escalada de Beauvoir que escolheu falar sobre a condição feminina a partir do corpo.
 
Começa, então, o percurso de Beauvoir em O Segundo Sexo, a partir do corpo de fêmea que "não constitui um destino imutável para a mulher". Para além do corpo que a faz ser "presa da espécie" e para além da "servidão da fêmea" cuja libertação ocorre na menopausa, está o seu "vir a ser". 

Todavia, para a mulher, a afirmação da individualidade, em termos de transcendência, historicamente mais pesada do que para o homem, pode se tornar mais pesada ainda, sobretudo quando ela nega seu destino biológico. A família, a educação, os costumes e as crenças predeterminam os papéis da mulher na sociedade. 
 
À medida que Simone vai conhecendo a história de Violette, ela a encoraja a escrever sobre sua sexualidade e sobre o aborto feito no 5º mês e meio de gravidez, quando Violette estava casada. Como escritora que "não se escondia atrás das palavras", Violette poderia "prestar um serviço às mulheres" - argumentava com assertividade.
 
Quando Simone incentiva Violette a "contar tudo" da sua história, podemos escutar Beauvoir em Os Mitos (3ª parte do 1º volume) em que analisa as heroínas de Montherlant, D.H. Lawrence, Claudel, Breton e Stendhal. Beauvoir aponta quem fala sobre as mulheres: os homens através das heroínas. A mulher ideal detrás da heroína revelaria ao homem algo  sobre ele, mas a partir dele. Nos mitos as mulheres não se revelam.
 
A escritora que analisa a função dos mitos em O Segundo Sexo convence Violette a escrever sobre sua sexualidade. Pela própria narrativa, ela poderia conquistar um espaço na literatura, inventando-o, em que a mulher fala - e não os homens detrás dos mitos.
 
O livro Ravages (Destroços, de 1955; no filme, Estragos) de Violette Leduc em que ela fala sobre sua sexualidade "como ninguém falou, com poesia, verdade e algo além" é lançado pela Gallimard, com cortes. Mantida, no entanto, a parte do aborto. E, assim, uma mulher pôde falar com sua própria voz sobre aborto na França. Finalmente, Violette alcança seu público com o livro La Bâtarde (A Bastarda - 1964), com prefácio de Simone de Beauvoir.
 
A personagem Violette é uma heroína de "carne e sangue", como ela diz, que faz uma bela travessia para se tornar escritora. Pela palavra tão viva dentro dela, a fantasia, que a aprisionava, a libertara. Simone sabia das possibilidades da força da palavra. E também sabia que a libertação de Violette levaria tempo, como O Segundo Sexo precisaria de tempo para ser compreendido.
 
Em outro filme, Os Belos Dias, de Marion Vernoux, Caroline (Fanny Ardant), uma mulher de 60, aposenta-se como dentista; não como mulher. Uma das coisas que pretende fazer na aposentadoria é ler O Segundo Sexo. Uma leitura tardia? Certamente, não. Nunca é tarde para O Segundo Sexo.
 
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Em 1971, Simone de Beauvoir redigiu o Manifesto das 343, publicado em Le Nouvel Observateur, assinado por ela, Violette Leduc, famosas e anônimas que declararam ter praticado aborto - proibido pelo Código Penal de 1810 e decretado, em 1941, crime contra a segurança do Estado*. 

Após os movimentos pela descriminalização do aborto, a Interrupção Voluntária da Gravidez foi legalizada pela Lei Veil em 17/1/1975 - homenagem a Simone Veil, Ministra da Saúde que defendeu na Assembleia Nacional Francesa o projeto de lei pela legalização do aborto.
 
Nos EUA, a legalização do aborto ocorreu em 22/1/1973, no famoso Case Roe versus Wade, em que a Suprema Corte Americana, por 7 votos a 2, julgou inconstitucional a lei do Texas e, consequentemente, todas as leis estaduais que restringiam, impondo condições, a prática de aborto nos primeiros três meses de gestação.

A Corte fundamentou sua decisão no direito à privacidade (decorrente da Cláusula do Devido Processo Legal da Décima Quarta Emenda  da Constituição) que assegura a autonomia da mulher com relação à decisão sobre a  interrupção da gravidez sem a interferência do Estado. Assim, Roe vs. Wade tornou-se um marco na luta das norte-americanas pela liberdade sobre o próprio corpo.
 
No Brasil, em 12/4/2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 8 votos a 2, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54) proposta, em 2004, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), que a interrupção terapêutica da gravidez de feto anencefálico não é crime. Antes desta decisão, as mulheres precisavam de autorização judicial, que poderia levar alguns meses, para realizar o procedimento.

O Código Penal de 1940, que tipifica o aborto como crime contra a vida, não elencou a gestação de feto com má-formação e sem possibilidade de vida fora do útero entre as exceções em que o aborto não é crime. Foi preciso que o STF reconhecesse que não há conduta criminosa na interrupção da gravidez de feto anencefálico; com impossibilidade de vida.

A sustentação oral foi feita pelo advogado Luís Roberto Barroso, atualmente ministro do STF, que não deixou de se referir à condição feminina que "atravessou muitas gerações em busca de igualdade, em busca do reconhecimento de seus direitos fundamentais" e ao direito da mulher de não ser tratada como "um útero à disposição da sociedade".

Estudos da Fiocruz apontam que a tipificação do aborto no Código Penal Brasileiro não  impede sua prática. O aborto inseguro reconhecido como um problema de saúde pública na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo/1994) é praticado, sobretudo por mulheres de baixa renda. O abortamento é a 5ª causa de morte materna no país.


*O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir (História, vol. 1, p. 180-181 - Ed. Nova Fronteira)

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Viviane Campos Moreira é advogada (B. Horizonte)
Publicado em http://balaiodavivi.blogspot.com

Mais: Quem fala por você, mulher?


domingo, 1 de março de 2015

Ele, o corpo



O cineasta alemão Werner Herzog dirigiu o documentário From one second to the next (De um segundo para outro) sobre acidentes de trânsito em que os motoristas, no momento da ação, teclavam mensagens no celular. O documentário integra a campanha “It Can Wait”, desenvolvida com a finalidade de tornar motoristas conscientes dos riscos de ler e de escrever mensagens ao volante.
 
O título do documentário, que remete ao presente-futuro, não é menos persuasivo do que as imagens e os depoimentos dos familiares das vítimas e dos motoristas que causaram os acidentes. E não deixa de ser impactante a eloquência do corpo das vítimas que, depois de um instante, não é mais o mesmo corpo e, desse instante em diante, talvez não seja mais o corpo amado.

Difícil não ouvir as imagens desse instante. Difícil aceitar o tempo desse instante. Difícil deparar com o futuro nesse instante.
 
Um corpo que tecla com outro – ação entre dois corpos com imagens – colide com um corpo. No entanto, este corpo não reproduz uma imagem – é um corpo estranho que está fora do enquadramento imagético da virtualidade. Nesse instante, o real descortina-se no que não é irreal: o corpo.

A fixação no presente sem futuro condensado no instante, que caracteriza o tempo da virtualidade, perde sentido no choque entre os corpos. O tempo fracionado entre a mensagem recebida e a enviada, que marca o ritmo da instantaneidade na virtualidade, não explica a chegada acidental do futuro. O instante seguinte se faz presente numa outra fração do tempo.
 
O futuro concretiza-se no corpo da vítima em um instante fora do tempo da virtualidade. Fora da noção instantânea do presente sem futuro do corpo que tecla. Num segundo, no instante seguinte, o presente torna-se o que não existe: o futuro. E o que é real parece irreal: um corpo sem imagem atravessado pelo futuro que chega violentamente num instante. Futuro que não foi inventado. Não foi desejado nem sonhado. Um futuro real demais. Seco. Desértico.

O belo filme Ela, de Spike Jonze, um dos melhores do ano, se passa em Los Angeles num tempo em que o virtual interage com o real em perfeita harmonia – um futuro próximo ou ainda distante?
 
Theodore (Joaquin Phoenix) apaixona-se por um Sistema Operacional (S.O.) que não possui nenhuma imagem, somente uma voz – da Scarlett Johansson.
 
Quando Theodore adquire o S.O., ele dá informações ao sistema da empresa de softwares sobre a sua relação com a mãe e escolhe uma voz feminina que se torna uma presença quase física na sua vida. Embora o S.O. chamado Samantha se queixe de não ter um corpo, ela se torna um corpo. Por que Samantha se torna um corpo para Theodore?

Em um encontro dele com a ex-mulher para assinar os papéis do divórcio – encontro que ele havia adiado – ela fica curiosa para saber como era a mulher com quem ele estava saindo; supostamente, ela queria descobrir o que essa mulher tinha que ela não tinha. Theodore diz uma das suas qualidades: amar a vida. Depois, naturalmente, conta-lhe que Samantha era um S.O.
 
Além de ter uma voz sensual, o S.O. era muito divertido e apaixonante. Como não se apaixonar por uma voz que se torna um corpo de palavras? Um corpo que reveste de fantasia o corpo do amado.
 
Ainda que a mulher por quem Theodore apaixonara-se fosse um pouco ou muito idealizada, a relação deles não era fake. E apesar de não ter um corpo de mulher, Samantha inventou um corpo que marcou profundamente os corpos de Theodore: o erótico, o afetivo, o da linguagem e o do homem. Eles se tornaram íntimos: amigos e amantes.
 
Theodore viveu uma bela história de amor com esse corpo de palavras que o ajudou a transcender o Theodore da dor do divórcio. Com o amor de Samantha, ele aprendeu a guardar o que é gostoso guardar de toda história de amor.

E o que o adorável S.O. teria para dizer às mulheres?

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Viviane C. Moreira
Publicado no Amálgama
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