terça-feira, 24 de maio de 2016

Quem parte, leva o quê?

Ricardo Correia em
O meu país é o que o mar não quer 
 

Uma peça escrita a partir da experiência do ator Ricardo Correia que deixou Portugal, seu país, como outros portugueses, por causa do rígido programa de austeridade. Embora a peça não proponha um debate sobre a condição dos emigrantes, ela nos convida a olhar para o emigrante. Quem é o emigrante? Quem são esse homem ou essa mulher que partem para um país estranho? Um lugar com outra língua, outra cultura, outro povo, outra história?

Além da narrativa da sua experiência em Londres, Ricardo colheu depoimentos de outros emigrantes. Ele entrevistou várias pessoas e, assim, foi montando a peça. Muitos partem em busca de algo sem saber o que realmente é, e pode ser que não descubram. Outros, por aventura. E outros tantos partem por medo de que as coisas piorem, ainda mais, no seu país.

A peça não pinta a situação dos emigrantes em cores verdejantes. A melancolia emoldura esse quadro em que gerações tentam encontrar uma saída. De quê? Muitos emigrantes não conseguem dar essa resposta. Outros querem voltar, mas são desencorajados pela família, pelos amigos. E muitos não dão conta de retornar - talvez tenham medo de reencontrar o reflexo do vazio do qual tentaram fugir.

Essas e outras questões estão na peça que fala mais dos afetos. Do medo. Do desencanto. E também da incapacidade de transformação. Embora muitos emigrantes tentem fugir dessa posição melancólica, não conseguem, no entanto, como sujeitos, mudar de lugar, pois continuam sendo emigrantes. E o tempo vai passando, também no país que resta em algum lugar dentro deles.

Em um momento, o personagem diz: "- Não foi meu país que me desertou. Eu quem desertei meu país." Em outro, ele diz: "- Quem faz um país é o povo e não seus governantes". Uma fala que aponta para nós, brasileiros. Não só para a crise de representatividade hoje, mas para nossas limitações como sociedade que ainda não consegue se ver no próprio espelho. Como uma sociedade que se recusa a ver sua própria imagem pode lançar para si um olhar diferente, para que possa se responsabilizar pelo seu papel político?

O personagem, que não consegue se implicar no tempo com relação a um deslocamento seu no desejo, termina a peça dizendo: "- Espero que um dia tudo isso acabe." 

Será que nós também esperamos que tudo isso, nessa crise nossa, acabe? Seria a esperança uma saída? 

Para Vladimir Safatle*, a esperança não é uma saída. Medo e esperança são oponentes. O medo paralisa. A esperança espera. Mas o desamparo produz algo. Segundo Vladimir, só as pessoas desamparadas podem agir politicamente.

Talvez precisemos sorrir pro nosso desamparo.

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Viviane C. Moreira


*Vladimir Safatle no Sempre um Papo em Belo Horizonte (23/5/2016).


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A peça  O meu país é o que o mar não quer esteve em cartaz em Belo Horizonte nos dias 21 e 22 de maio de 2016 no Festival Internacional de Teatro - FIT.

Mais sobre o FIT-BH 2016: aqui
 

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Que imaginário é esse?

Richard Silvaggio

 
Lendo A família em Desordem de Elisabeth Roudinesco me flagrei revendo outros episódios, a partir de um, narrado por ela, com o rei Luís XV. Em 5 de janeiro de 1757, um homem da classe dos criados “tocou” com a lâmina de um canivete o corpo do rei para, com esse gesto, chamá-lo à razão. Damiens não queria matar o rei, mas lhe dar um toque.

No imaginário do agressor, o corpo político de Luís XV estava em perigo. A cabeça do rei estava ameaçada pela influência do feminino. O rei que se dedicava à paixão pelas mulheres, a uma especialmente, Madame de Pompadour, estava pondo o reino em perigo. A França poderia ser governada por uma mulher. Pelo outro. Pelo feminino. Pelo outro corpo. Pelo corpo do outro. Pelo corpo da mulher. Pelo corpo associado à paixão. Pelo feminino associado à desordem. Assim, o corpo do rei, o masculino que representava a razão, tinha que estar protegido do corpo que simbolizava o lugar de todos os perigos. O rei precisava voltar à razão para salvaguardar seu corpo político e a soberania do reino.

Um outro episódio, em 1992, fala do imaginário de uma sociedade. Segundo Marilyn Yalom (A história da esposa – da Virgem Maria a Madonna), os norte-americanos não estavam prontos para Hillary Clinton. Ela não encarnava o papel de esposa perfeita, como as anteriores, Nancy Reagan e Barbara Bush.

Advogada, atuante politicamente e não submissa ao marido, os americanos se sentiram ameaçados por essa esposa “bem-educada, confiante e ambiciosa”. Hillary teria mudado estratégias, táticas e o penteado durante o primeiro mandato de Clinton, mas ainda que se esforçasse para conquistar a simpatia dos americanos, muitos não deixaram de demonstrar sua repulsa, até a traição de Bill.

Hillary, então, tornou-se uma mulher traída. E por ter permanecido ao lado do marido, suportando todos os detalhes da traição bastante explorada, sua popularidade subiu e ela se tornou uma esposa com quem as americanas puderam se identificar. Hillary já possuía um corpo político, mas não era aceita pelos americanos.

Outro episódio poderia ser objeto de estudo - tomara que seja. Diz respeito ao contexto* do impedimento da Presidenta Dilma. Como bem disse Carla Rodrigues, Dilma caiu por ser “mulher, guerrilheira e honesta”.

Dilma não nasceu Dilma. Ela inventou a Dilma, esse nome que nomeia um outro corpo, que já existia antes de ela ser eleita e reeleita. Dilma se tornou Dilma à medida que construía esse outro corpo. Ela se deu esse outro corpo. Um corpo vilipendiado pelo regime de exceção e marcado pela crueldade dos homens nos porões da ditadura, como se diz.

Nas garras de seus torturadores, e sob suas faces sinistras, ela continuou construindo a Dilma. Essa outra. E também seu corpo. Nesse momento, resistir à tortura, marcando para sempre seu corpo, era uma forma de prosseguir na construção do seu corpo político. Dilma assim o fez e também marcou seu corpo de mulher honesta, corpo que ela também se deu. Mas o significado de mulher honesta não é honesto.

Mulher honesta é uma invenção dos homens para dar às mulheres um lugar: o do dever de fidelidade. Às mulheres, o dever de fidelidade. Aos homens, o direito à infidelidade. Mulher honesta é a que não trai seu dever de fidelidade. Pode ser traída, mas não pode trair o seu dever. Não pode subverter uma ordem estabelecida que mantém o sexo feminino preso à mulher honesta na organização social do patriarcado.

Já a mulher que trai seu dever de fidelidade torna-se indesejada. Constatar, no entanto, que a indesejada pode ser apenas uma mulher que não cumpriu o papel desejado numa ordem perversa, por exemplo, isso não modifica nada. Nós, mulheres, não inventamos a mulher honesta. Nem o seu lugar. Como reconhecer seu corpo? 

Todos os corpos da Presidenta foram negados. Tanto seu corpo político, como seu corpo de mulher e sobretudo seu corpo de mulher honesta. Todos foram rejeitados. E seu corpo de mãe, seu corpo de avó e seu corpo de filha, ignorados. Dilma também é filha, mãe e avó. Ela vem de uma família mineira de classe média alta. Tem uma filha que se tornou juíza. Mãe e filha construíram carreiras bem-sucedidas. Dilma foi uma boa mãe, no entanto, chegou ao Planalto com seu corpo político e com o seu corpo de mulher honesta sem usar a maternidade para conquistar a simpatia das brasileiras. 

Uma brasileira que se deu outros corpos, inclusive o da mulher honesta, foi eleita e reeleita Presidente da República, mas não foi possível suportar esse corpo no Planalto. O corpo que passou a existir na política, a partir da construção de uma mulher, que chegou ao centro do poder, sem homem. Talvez seja importante prestar atenção no corpo para o qual as brasileiras deram tchau.



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*O contexto: um recorte do episódio do impedimento da Presidenta Dilma, a partir de um ponto de vista baseado no comportamento dos brasileiros e das brasileiras.

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Viviane C. Moreira 

domingo, 15 de maio de 2016

Entre o príncipe e o sapo













IDEIA FIXA



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Viviane C. Moreira em AMOR EM PEDAÇOS & VERSOS
Este poema está dentroforaalémporquenão? da crônica  
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Imagem: peça de Acácia Azevedo - Blog

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