quarta-feira, 27 de maio de 2015

Malvine, a convidada

Malvine Zalcberg
Foto: Isaac Merkman
 
 
Em uma esquina qualquer, podemos topar com ele.
Em uma situação corriqueira, podemos ser por ele surpreendidos.
Sem mais nem menos, à toa, ele pode acontecer.
Afinal, o amor tem dessas coisas.
Uns o desejam. Outros, não.
Alguns o perseguem apaixonadamente.
Outros fazem dele a própria razão de viver.
E há quem consiga fazer arte a partir dele.
 
Na entrevista a seguir, Malvine Zalcberg fala sobre o amor entre o homem e a mulher, o amor entre mãe e filha, o amor na constituição da feminilidade, levando em conta as transformações na sexualidade feminina e nos costumes. Do amor cortês aos amores da contemporaneidade; das cartas de amor às mensagens em celulares e frases no Twitter; das juras secretas a fotos e declarações compartilhadas no Facebook – como o amor tem sido vivenciado por homens e mulheres?
 
Malvine é psicóloga, psicanalista, doutora em psicanálise, autora de A relação mãe e filha (2003), Amor paixão feminina (2007) e Qu’est-ce qu’une fille attend de sa mère? (2010). No blog Olhar de Psi, compartilha artigos com comentários sobre filmes, teatro, arte. E em seu site há, entre outros, links de programas de TV com sua participação.

*
Amálgama: Na sua obra e em suas palestras e conferências pelo país e no exterior, você tem falado do amor. Por que o amor?
Malvine Zalcberg: Comecei a me deter na especificidade da sexualidade feminina há muitos anos. Foi neste percurso pela feminilidade que constatei o lugar fundamental que o amor ocupa no psiquismo da mulher. Não só ao amor a mulher reserva um papel mais importante do que o homem, mas um diferente. Talvez em nenhuma dimensão se revele tão profundamente a diferença de constituição emocional e psíquica de homens e mulheres quanto às formas distintas que ambos têm de amar. Lacan o destaca ao afirmar que os homens têm uma forma de amar fetichista (por fazerem da mulher objeto causa de seu desejo em sua fantasia) e as mulheres têm uma forma de amar erotômana (por desejarem tanto ser amadas). Ouço com freqüência dizer-se que as mulheres amam loucamente. Penso mais que as mulheres querem ser loucamente amadas.
 
O amor é mesmo uma paixão feminina?
Pelo que expus, o amor torna-se uma verdadeira paixão na mulher. Mesmo que a grande revolução sexual do século XX tenha alçado a mulher a um novo lugar na sociedade, não alterou alguns fatores de sua constituição psíquica. A igualdade social entre os sexos só faz crescer, mas a desigualdade amorosa entre os homens e mulheres continua, ainda que com uma intensidade menos marcada que no passado. As mulheres não estão mais tão dispostas a sacrificar vida pessoal e realização profissional no altar do casamento, mas não desaparece o lugar que o homem ocupa em sua constituição. Nem é sempre o homem em si que é o importante para a mulher, mas sim o amor dele com o qual ela se conforta em sua busca de identidade feminina. Busca que é o eterno problema feminino, como Freud foi o primeiro a formular e Simone de Beauvoir a adotar: “uma mulher não nasce mulher, deve se tornar uma”. O tornar-se mulher, pelo qual a mulher encontra uma definição de sua feminilidade, é favorecido pelo amor que lhe dedica o homem. Aliás, desde pequena a menina busca o amor, primeiro o da mãe, que lhe transmitiria algo da feminilidade, depois o do pai, que o confirmaria vendo nela uma mulher em formação e, finalmente, o homem que consolidaria esta identificação feminina ao amá-la.
 
Com as mudanças na sexualidade feminina, iniciadas nos anos 1920, impulsionadas pela invenção da pílula e consolidadas pela revolução sexual nos anos 1960/1970, o amor ainda é o principal desejo feminino?
Continuando o fluxo deste pensamento em relação à especificidade da sexualidade feminina, podemos dizer que efetivamente, as conquistas desse período continuam incontestáveis: a contracepção, o divórcio, o acesso ao mundo do trabalho favoreceram mudanças profundas da condição feminina. Hoje as mulheres tornaram-se autônomas, independentes, capazes. Dentro das escolhas dos nossos tempos em constante e até certo ponto vertiginosa transformação, encontramos soluções das mais variadas: mulheres que não deixam de ansiar encontrar o homem dos seus sonhos – aquele que a saberia amar – e que um filme recente como Cartas para Julieta ainda evoca. Vale lembrar que enquanto a mulher nestas circunstâncias busca o homem do Amor, o homem, em contraponto, busca a mulher Ideal. Outras mulheres optam por serem amantes liberadas com encontros fortuitos bem ao estilo dos “amores líquidos” dos quais nos fala o sociólogo Zigmunt Bauman e é ilustrado no filme Perto demais. Outras ainda acreditam poderem dispensar o homem e constituem as novas figuras femininas multifacetadas: a profissional realizada, politizada, culta, viajada, que administra com eficiência lar e a vida dos filhos, assim como é determinada na malhação de seu corpo e na adoção de alimentação saudável. Como uma Sarah Palin tornou-se um ícone da nova mulher nos Estados Unidos? Elas acabam se queixando da falta de virilidade dos homens para cujo surgimento tanto contribuem.
 
Como anda o amor hoje entre homens e mulheres? “Bem, obrigada”?
Constatamos uma nova fase de tentativa de superação da crise que a Internet favoreceu com os encontros virtuais. O filme Denise está chamando refletia este isolamento em que viviam as pessoas, comunicando-se apenas virtualmente. Hoje, a Internet entra numa nova fase: há, através deste novo meio, uma tentativa de encontros reais. O que indica que as pessoas foram realizando que apenas encontros virtuais levavam à depressão e ao isolamento. Posso não precisar de ninguém, isso dá um sentido de grande liberdade, mas tem a contrapartida: a de descobrir de que ninguém precisa de mim. Eis-nos submetidos hoje, homens e mulheres, a uma exigência contraditória: amar apaixonadamente, se possível ser amado do mesmo jeito, mas permanecendo autônomo. Estar acompanhado sem se sentir limitado, com a esperança de que como casal se possa encontrar suficiente flexibilidade para permitir esta coexistência harmoniosa.
 
Por que se diz que o amor está ameaçado e precisa ser reinventado?
Como sustenta o filósofo Alain Badiou em seu livro Elogio do amor, hoje busca-se, inclusive, pelos sites de relacionamentos, um “amor seguro”, um em que se pensa conhecer todos os detalhes para não ter de enfrentar surpresas. Alain Badiou prega o retorno à aventura e à surpresa dos encontros amorosos, pela poesia que encerram. A própria busca de evitamento de riscos nos encontros é uma ameaça que pesa sobre o amor: é lhe tirar toda a sua importância, toda a experiência autêntica de alteridade que é o fundamento das relações. Não se deveria fazer a economia da paixão. O que supõe provavelmente como o dizia o poeta Rimbaud que é sempre necessário reinventar o amor. O mundo está, com efeito, cheio de novidades e o amor deve ser considerado dentre estas inovações. É preciso reinventar o risco e a aventura contra a segurança e o conforto.
 
Nelson Rodrigues, falando sobre o amor em Flor de obsessão, disse que “O homem começou a própria desumanização quando separou o sexo do amor. A partir do momento em que o ser humano separou o amor do sexo, passamos a fazer muito sexo e nenhum amor. Ficamos no desejo, eis a verdade. E o desejo, como tal, se frustra com a posse.” De certa forma, o Nelson fez uma leitura sobre o amor, o sexo e o desejo na atualidade. Hoje, seríamos supostamente mais resolvidos no sexo que no amor?
Amor e sexo são dimensões diferentes do ser humano e têm outras inscrições psíquicas tanto em homens quanto em mulheres. Um dos propósitos de Freud foi submeter as condições amorosas dos sexos a um estudo particularizado, temas que sempre foram explorados por poetas e escritores antes dele. Tendo se dedicado inicialmente ao estudo da sexualidade masculina, por achar que a feminina estava muito envolta em sombras, foi o primeiro a dizer que o homem cinde seu objeto entre o do amor e o do sexo — entre a virgem e a prostituta — por questões ligadas à sua constituição edípica. Ainda hoje esta cisão é constatada clinicamente: a do homem que ama uma mulher com a qual não pode ter sexo e que deseja sexualmente a mulher que não pode amar. Por muito tempo, acreditou-se que a mulher não cindia seu objeto de amor. Hoje se realiza que a mulher pode cindir o mesmo homem em dois: o do sexo e o do amor ou faze-lo através de dois homens. Mas ela estará sempre em busca do homem do amor. Entretanto, se dizemos, e aí Nelson Rodrigues foi um precursor de nossos tempos, que hoje se busca muito mais a satisfação de forma geral, não só a sexual, mas de outras formas, com a multiplicidade de objetos de gozo em nossa sociedade, sim, podemos dizer que a falta de amor desumaniza o ser humano. Porque todo gozo é auto-erótico, só visa o prazer e não leva em conta o Outro que chega a dispensar. Por isso, as mulheres que estão sempre em busca do amor são as grandes promotoras dos encontros possíveis entre os seres humanos.
 
O narcisismo exacerbado hoje, além de impedir o amor, também não ameaça o sexo entre dois “corpos desejantes” – corpos erotizados pelo desejo?
O narcisismo, com a valorização da imagem, o consumismo, o individualismo, são fatores de isolamento e de afastamento do Outro, assim como o são o alcoolismo, as toxicomanias e os transtornos alimentares como a bulimia e a anorexia (afecções atingindo mais as mulheres). Como Lacan preconizou em seu texto sobre “A subversão do sujeito e dialética do desejo”: “É preciso que o gozo seja recusado para que dê lugar ao desejo”. Esta passagem do gozo para o desejo é favorecida pelo amor.
 
No seu livro A relação mãe e filha, você fala da relevância da relação entre mãe e filha para a constituição da feminilidade da filha. Afinal, o que uma filha espera de sua mãe?
Que a mãe tenha resolvido suas questões pessoais, enquanto mulher, na maioria das vezes em dependência de sua problemática com a própria mãe. Em geral, leva-se em conta o lado da filha “de que mãe ela tem”, e não se considera o lado da mãe “de quem foi sua mãe” para esta. Frequentemente a mãe, de forma sutil e inconsciente, ainda está muito comprometida com sua própria mãe, não tendo encontrado uma saída harmoniosa desta relação. Um filme recente com Catherine Deneuve, Diário perdido, ilustrou como a filha ficara presa ao passado nebuloso de sua mãe e só conseguira assumir sua gravidez (em vez de abortar como cogitara) ao descobrir o grande segredo da relação de sua mãe com a própria mãe por quem se sentira abandonada; tal fato tendo repercutido dramaticamente em sua vida e, particularmente, em relação a sua filha que abandonara por sua vez. Na verdade, a mãe não voltara para casa como havia prometido ao sair, por vontade própria: havia sido assassinada. Descobrir esta cruel verdade foi profundamente libertador: o segredo revelado modifica a vida da mãe e sua relação com a filha. Uma criança a quem se permite então nascer sela um novo destino entre as duas.
 
No artigo “Dançando à perfeição sua perda na escuridão“, você comenta sobre o percurso da bailarina Nina — personagem de Natalie Portman no filme Cisne Negro –, e explica por que ela não conseguiu “se tornar mulher”. Há outras ameaças ao “tornar-se mulher”, para além da relação mãe e filha — a própria Simone de Beauvoir apontou os perigos da cultura que prescreve papéis às mulheres, desde a infância à maturidade, “naturalmente”. A “questão feminina” ainda permanece bastante complexa, apesar da emancipação das mulheres?
Esta é uma questão para a qual se deve atentar: as conquistas sociais que modificaram a posição social das mulheres não devem ser confundidas com a posição psíquica que as mulheres assumem frente a um outro e no caso que estamos considerando aqui, face a um homem. Homens e mulheres não entram na relação sexual adotando posições complementares. Não constituem duas metades da laranja. Há a maneira do homem entrar na relação sexual e há a maneira da mulher fazê-lo. E eles assim o fazem em função de cada um se constituir diferentemente: desejos, fantasias e gozos, formas de amar, têm características específicas em homens e mulheres. O que não quer dizer que homens não possam se colocar numa posição feminina e as mulheres numa posição feminina, como Lacan bem mostrou em suas fórmulas da sexuação. A condição masculina implica de o homem saber fazer da mulher causa de seu desejo – é o que o faz saber amar uma mulher – e a condição feminina é aceitar ser o objeto de desejo do homem em sua fantasia. Acabou de sair no jornal O Globo uma reportagem sobre o escritor e fotógrafo Zeca Fonseca, filho do escritor José Rubem Fonseca. Em suas declarações, Zeca Fonseca revela que depois de um período de drogas, álcool, e sexo compulsivo, dá a volta por cima: lança livro (Artérias), terá um livro e um conto tornados filmes. Mas, sobretudo, Zeca Fonseca conta que atualmente só faz sexo com a mulher: conseguiu fazer da mulher objeto de seu desejo.
 
Muitas vezes, buscamos um amor que seja perfeito, um amor que nos complete, nos satisfaça. Qual é o amor que faz bem para a psiquê?
Acho que esperamos demais do amor. O amor é, sobretudo, algo que se conquista. Ele depende de um encontro contingente, mas depois, deve se fixar. Ele não pode ser apenas o encontro e uma relação fechada entre dois indivíduos, mas deve se tornar uma construção. Deve-se ter uma certa dose de obstinação em fazê-lo existir. Uma das mais poéticas declarações a este respeito vieram de um dos mais importantes intelectuais da atualidade. Filósofo e jornalista, André Gorz rendeu através de seu último livro, Carta a D. – História de um amor, uma das mais belas homenagens à sua mulher: “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca”.
 
No filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen, o escritor Gil (Owen Wilson) persegue sua fantasia de amor, não abrindo mão dela, apesar dos seus desencontros amorosos. Ter uma fantasia de amor pode vir a ser uma saída, para quem deseja o amor?
O importante é não desistir de desejar. O desejo é o que move o homem, visando sempre um outro objeto na certeza de que nunca o alcançará definitivamente. O desejo é realmente o que humaniza o homem, o que o distancia de uma simples demanda. De forma que se é pela fantasia de amor que o escritor Gil, personagem do filme de Woody Alen, expressa a manutenção desta dimensão importante em sua vida, constata-se de que esta independe do sucesso ou fracasso nos encontros amorosos.
 
O amor é o final feliz?
O amor é o final feliz se é este o final buscado. Só não podemos transformá-lo no único final de nossas vidas, porque a demanda de amor sem limites, como costuma acontecer em casos de algumas mulheres, é indício que estas procuram resolver questões que as atormentam num nível mais além do amor. Em seu livro O passado, Alan Pauls escreve sobre as militantes do amor na contemporaneidade, fazendo da personagem Sofia essa figura feminina que converte o amor em Amor, ou seja: em uma causa.

______________________________________________
Entrevista por Viviane C. Moreira - publicada no Amálgama


segunda-feira, 18 de maio de 2015

O outro texto e o outro escritor

Aderbal Freire-Filho
  
O diretor de teatro Aderbal Freire-Filho (Incêndios) troca de papel: de entrevistador no programa Arte do Artista (TV Brasil) para o de entrevistado, e fala sobre direção, sobre o lugar do diretor e a importância do teatro hoje para a sociedade. E muito mais...
 
Aqui: vídeo


segunda-feira, 4 de maio de 2015

Tennessee & seus personagens

Foto: Guto Muniz
 
 
Em cena. Na peça Migrações de Tennessee, o escritor e dramaturgo norte-americano Tennessee Williams divide o palco com seus personagens.
 
A partir de uma entrevista, Tennessee, já consagrado, fala do autor Tennessee Williams. E a partir da fala do entrevistado, a peça conta sua história entrelaçando-a com as de alguns de seus personagens.
 
A peça não deixa de tocar nas marcas da relação dele com a irmã Laura e com a mãe - uma mulher ambiciosa e, na mesma medida, frustrada, que se tornou uma mãe autoritária e  massacrante.
 
A irmã não conseguiu se salvar dessa mãe e o irmão teve que aceitar sua impotência com relação à fragilidade da irmã, apesar de todo seu amor por ela. Enquanto faltava a palavra à irmã, Tennessee a descobre e não se separa mais dela.
 
Palavra. Invenção. Vida e arte. Em ação.
 
No palco, que até parece uma tela de cinema, um pouco do universo de Tennessee Williams, com seus personagens à margem. Este o cenário: a margem.
 
*
 
Migrações de Tennessee, em cartaz na Funarte (B. Horizonte) até o próximo fim de semana.
Direção: Eid Ribeiro
Com Camila Moreno, Cristiano Peixoto, Fábio Furtado e Juliana Martins.
 
Funarte - Rua Januária, 68 - Centro, Belo Horizonte - MG, 30110-055
(31) 3213-3084