sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Pussies na rua



E, finalmente, 2017 começou com um desfile de pussies rosas, vermelhas, marrons, pretas, amarelas, brancas, laranjas, roxas, violetas, cinzas, azuis nas cabeças de mulheres, homens, crianças e idosos nas ruas de Washington. Desfile que se espalhou para outras cidades dos Estados Unidos e do mundo.

Pussy é uma palavra versátil que pode significar uma coisa e outra, sem que haja, entre seus significados, um muro. Pussy pode ser gatinha e também vagina. E a palavra simbolizada pela imagem de gatinha nos gorros remete ao seu outro significado


Em resposta a posturas inadequadas no tempo e no espaço do Presidente Donald Trump, durante a campanha, centenas de milhares de mulheres foram para as ruas de Washington exibindo, nas suas cabeças pensantes, falantes e criativas, o lugar da feminilidade hoje na sociedade norte-americana.


O gorro de gatinha foi usado como artifício para dizer o que pode ser dito da feminilidade hoje pelas próprias mulheres que brincaram com a palavra pussy. O chapeuzinho de pussy afirma o que a palavra significa. Mas por que a vagina?


Ainda hoje, no imaginário de homens e mulheres, a inferioridade feminina pode estar associada à falta do órgão, no corpo da mulher, que representa o falo. Culturalmente, a “natureza feminina” decorrente do corpo da mulher despossuído de virilidade foi apropriada pelos homens na construção da feminilidade. Nestdeterminou-se um lugar bem marcado, socialmente, para as mulheres: a família e o lar, como diz Maria Rita Kehl em Deslocamentos do feminino. Esse lugar marcado serviu para afirmar a ordem burguesa: famílias nucleares, com as mulheres no lar. Contudo, nem todas as mulheres, sobretudo no séc. XIX, ajustaram-se à fixidez desse lugar e, ainda que tenham tentado, não se adaptaram ao padrão burgs de feminilidade.


Essas mulheres, pela sua rebeldia, possibilitaram a Freud escutar a insatisfação delas com a feminilidade da época. Assim, a psicanálise foi criada em um contexto histórico de declínio da família patriarcal, como diz Elisabeth Roudinesco (Medicina, psiquiatria e psicanálise – semiologia do sujeito no livro Em defesa da psicanálise - ensaios e entrevistas). “Freud, tributário de uma visão política da histeria, atribuiu-lhe valor emancipador, assimilando-a a uma revolta impotente das mulheres entravadas em sua sexualidade”. A revolta dessas mulheres, no entanto, possibilitou que novos arranjos de família surgissem tempos depois a partir de invenções de outras mulheres.

Maria Rita Kehl aponta a insatisfação da personagem Emma Bovary (Flaubert) com feminilidade da sua época. Ainda que Emma desejasse se tornar outra mulher, ela não poderia, por causa da sua limitação na linguagem. Ela ficou restrita ao mundo de linguagem do outro que não deixa de ser um mundo de linguagem pronto - um muro concreto. Não conseguiu inventar o próprio discurso, ficando presa no discurso do outro e na posição de objeto do desejo do outro. Quem sou? Esta pergunta, Emma não conseguiu responder, ainda que tenha sido esposa, mãe e amante de outros homens. A transgressão possível para Emma foi se transformar em uma consumidora sem limite. “A mulherzinha de Flaubert”, como provoca Maria Rita, foi falada pelo outro. Não alcançou o falo da fala.


As mulheres da Marcha de 21 de janeiro de 2017 não precisam mais reivindicar o falo da fala, como as do séc. XIX. Precisam, todavia, defender a sua posse. Foram para rua defender direitos já conquistados e com amorhumor usaram o falo da fala. O chapéu de pussy enfeitou a cabeça de quem hoje sabe brincar com o falo da fala. E se a vagina no séc. XXI, em imaginários de gosto duvidoso, ainda persiste associada à inferioridade feminina, por que as pussies brincalhonas ficariam escondidinhas em casa?  

Nessa marcha, as mulheres de Washington não estão sozinhas e mais coloridos estão seus discursos.  


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Viviane C. Moreira
Postado em  balaiodavivi.blogspot

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Sobre a multiplicidade de discursos feministas na atualidade - ensaio de Carla Rodrigues na Serrote:  aqui