sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

UM BONSAI NA JANELA


Collage 2/4

O relógio azul-calcinha sobre o micro-ondas na quina da bancada onde eu cresço sem me podarem marca 6h45. Ela chega.
 O barulho da água, o primeiro som do dia.
 Ela enche a chaleira para fazer o café.
Nenhum cãozinho na cena.
Às 8h15, chega a loura que trabalha aqui e me dá "bom dia" e mais água do que preciso. Sempre.
Transbordo.
Depois do meio-dia, ela passa por mim mas nem te ligo e fala com a loura que "água demais afoga, entende?"
 Tarde longa com a loura e o telefone e a bina.
 "Quer apostar que são eles? Lembra-se do 11? Aquele que falou 'tia, vim passar o Réveillon contigo'. Achei que era um amigo paulista e dei corda, mas quando ele disse meu nome, quando ele disse, me dei conta de que não estava falando com meu amigo porque esse meu amigo só me chama de Lora. E o 85, o cearense? Disse que eu tinha ganhado na loteria sem eu ter jogado e quase acreditei."
 Por volta das 15h45, a loura já foi embora.
Nenhum cãozinho comigo. Não sei por que me queixo da falta de um cão. Como seria o olhar dele para mim? Faz dez anos que estou no mesmo lugar.
 Entre as 19h e as 19h30, ela passa por mim nem te ligo de novo. Vai ler os recados e checar os e-mails.
   Depois das 22h, ela me refresca com jatinhos de água, cochicha comigo e arruma minhas folhas como se penteasse o cabelo da cor de mel.
 O invisível pisca com o calor do gesto.
 Ela entende o que não digo?
 Só sei que cresço e cada dia mais eu cresço e já não sei o que sou.
 
*
Publicado em Jurema, este meu.
Obra coletiva com contos e poemas sobre o cotidiano, com edição e organização de Carina Gonçalves.
    Projeto gráfico de Elza Silveira, ilustração da capa de Guilherme Toledo, revisão de Diogo Rufatto.
Impressões de Minas Editora, Selo Leme. 
Belo Horizonte (2019).
 
**
Mais sobre Jurema, aqui: 
https://balaiodavivi.blogspot.com/2019/02/jurema-o-livro.html