domingo, 30 de agosto de 2015

Quando o nada é tudo

Krum


Um homem vai para o estrangeiro, fica um tempo por lá e, tempos depois, volta para a casa da mãe sem ter visto nada. Sem ter encontrado nada. Sem ter descoberto nada. 

O homem que vivia num lugar que era chamado de buraco sai pelo mundo em busca de... nada. Retorna com o nada.

Krum, o nome dele, desse homem que, entre a gente, começa a contar sua história. Não disfarça nada. Não mascara o nada. Diz que viveu no estrangeiro e que nada encontrou. Lança um olhar desafiador pra gente, com a gente, na plateia: 

"- Vou escrever um romance que fala da mediocridade. Quem são vocês? Funcionários."*

Então, Krum reencontra a mãe de mãos vazias, com uma mochila apenas; dentro não havia nada. Reencontra amigos e a mulher com quem teve um relacionamento - romance não seria um nome para Krum e uma história de amor não lhe seria possível viver. 

Krum se reconhece um deles. Mais um entre eles. Um membro de um grupo de pessoas enlaçadas pelo nada. Queixa-se da própria inércia, mas se recusa a ir além das fronteiras da sua mediocridade e também da mediocridade coletiva. 

Aponta o nada para os outros: a vida que é nada. Ele fala do nada para todos, anuncia o nada, mas permanece atado ao nada que se perpetua na vida dele e na de todos. 

As mulheres casam-se com os homens de quem não gostam como uma saída para o nada que não dá em nada. Os homens aceitam se casar com elas e permanecem casados com elas, tecendo o nada. Pra nada.

O corpo da mulher sem saída, que se casa com um homem como uma saída do nada, despenca-se da cama que não está coberta pela pele do desejo. Um corpo de mulher em queda na noite de núpcias... A mãe de Krum, que quer experimentar uma fase nova na vida num corpo de avó, despenca-se no chão quando o filho desiste de se casar com essa mulher que se casa com qualquer um.

Uma das mulheres diz:

"- No século XXI, toda hora um cai e levanta e, mal consegue se levantar, já cai de novo."*

Corpos em queda nas ruas da vida feita de buracos. Viver não é mesmo fácil. Talvez nunca tenha sido. Inventar uma vida, no entanto, não precisa ficar restrito a poucos. Vida boa é a que a gente inventa. Afinal, podemos inventar na vida uma avenida larga com o nome cai&sara - por que não?

O personagem Krum que não começa a escrever seu romance lembra Jep Gambardella (Toni Servillo) de A Grande Beleza que está com 65 anos e não inicia o seu segundo romance. Contudo, são personagens muito diferentes. Jep é herói. Krum, anti-herói. O romance deste foi escrito na própria vida engavetada no nada.

(*Falas citadas não literais)

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Viviane C. Moreira
Postado em http:/balaiodavivi.blogspot.com

 

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Krum - Companhia Brasileira de Teatro
Texto: Hanoch Levin
Direção: Márcio Abreu
Com Cris Larin, Danilo Grangheia, Edson Rocha, Grace Passô, Inez Viana, Ranieri Gonzalez, Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rodrigo Ferrarini
Tradução: Giovana Soar
Adaptação: Márcio Abreu e Nadja Naira
Tradução do hebraico: Suely Pfeferman Kagan

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Enfim, juntos

Omar Sy e Charlotte Gainsbourg
 
 
Uma hashtag muito comum nas redes sociais, #tamojunto, pode significar justamente o contrário. Ora usada por solidariedade, em posts de luto, ora usada por camaradagem, em posts queixosos, ora usada para encerrar uma discussão boba com um velho amigo que reencontramos na rede, ou com uma nova amiga que acabamos de adicionar, mas que discorda radicalmente do nosso ponto de vista - na rede o ponto de vista nunca é de um.
 
O #tamojunto é uma saída, uma porta de emergência num corredor de argumentação exaltada em que pouco importa como se diz algo porque se acredita que algo tem que ser dito, ainda que não precise ser dito, sobretudo como é dito.
 
Ele nos salva de dores de cabeça que vão muito além da virtualidade. Entretanto, nos diz: estamos juntos exatamente no ponto em que discordamos; eu fico de um lado, o certo, e você do outro, o errado. Juntos? Não, mas tamo junto: euxvc.
 
A virtualidade talvez nos apresente os mesmos espelhos com que nos deparamos na nossa realidade. O próximo da rede é meu próximo até me mostrar a imagem que eu não fiz dele. Quando me deparo com a imagem dele que não corresponde à minha - a que eu fiz -, estranho essa imagem. Eu estranho esse outro com uma imagem distorcida. E como posso excluí-lo dos meus contatos, nem preciso olhar mais para ele. Um clique. Pronto. Ex-próximo. Ponto. Estranho.
 
No mundo além da virtualidade, contudo, o estranho pode estar ali, na outra sala, sentado em uma cadeira no escritório, à mesa de reuniões, e eu tenho que suportar sua presença, em carne e osso, e diferença. Enquanto converso forçosamente com ele, eu posso desviar meu olhar para meus próximos da rede que não são próximos - isso alivia? Pode ser que sim.
 
Há, no entanto, quem prefira o sobressalto de um olhar inesperado e a crueza de seus reflexos. E há quem prefira o afeto que habita nas camadas de beleza da pele, ainda que não esteja emocionalmente pronto para estar com o próximo nesse lugar: na pele.
 
Samba, filme de Olivier Nakache e Eric Toledano, de Intocáveis, com Omar Sy e Charlotte Gainsbourg nos convida a olhar para o estranho. Quem é ele?
 
Alguém que muda de lugar e cruza fronteiras. Alguém que aprende a língua do outro, uma língua estranha. Alguém que traz a dança no nome e, para sobreviver, precisa mudar de identidade. Precisa se passar por outros, estranhos. Precisa mudar de figura na dança da sobrevivência. Alguém que traz no nome a ginga, o movimento, o requebrado, o jogo de cintura. Alguém que aprendeu sambar na vida. Um homem que na condição de imigrante luta por um trabalho melhor que possa lhe garantir a sobrevivência com dignidade.
 
Quem é ela, a estranha? Alguém que se perdeu em uma única identificação. Alguém que se identificou tanto com o trabalho que perdeu sua própria medida. Alguém que se perdeu numa pele estranha, pré-fabricada pelo trabalho, esculpida na rotina casa-trabalho-casa-trabalho. Alguém que se prendeu numa pele desidratada de fantasias. Alguém que experimentou na própria pele o estranho pelo avesso. Quem é essa presença estranha em mim? Essa louca? O que esse ser estranho diz que não escuto? Por que deixei de escutá-lo? Quem não sou sendo quem sou? Uma mulher bem-sucedida profissionalmente que luta para ir além daquela que se tornou. Uma mulher asfixiada pela legenda que recobre sua pele.
 
A cidade: Paris. Cidade luz. A cidade dos romances. Cenário perfeito para o encontro. O homem que muda de nome e troca de identidade para sobreviver na Paris dos imigrantes encontra a mulher que não consegue ir além daquela que a asfixia. Tensão à flor da pele: mobilidade demais x mobilidade de menos. Um precisa do outro para ir além de quem ainda não são.
 
O homem de falsas identidades recusa-se a pôr a etiqueta depressiva na mulher que luta para se libertar da pele em que se prendera. Ele olha pra ela. E ela pra ele. Simplesmente.
 
No olhar para o outro, e não sobre o outro, eles se descobrem próximos, estando juntos. Apostam no eueooutro. Não precisam listar os mesmos gostos nem pôr na balança que um gosta de samba, mas o outro de jazz; um gosta de cerveja, o outro, de vinho; um, de Paris, o outro, de Nova Iorque. Não há tempo a perder com o euxooutro.
 
Eles escolheram estar juntos porque gostaram de estar um com o outro e estão juntos no mesmo momento: no começo do que pode vir a ser o melhor deles. Talvez seja este o destino do amor, quando o outro não é o inferno.
 
Poderia ser em Hollywood, mas lá uma linda mulher conquistou o coração de um homem no grande estilo dos contos de fadas. Paris, cada um tem a sua. Há a Paris de Sartre e de Simone de Beauvoir, também, a de Violette Leduc. Uma cidade e muitos cenários. Várias Paris em uma, a se descobrir em seus cantos, a se revelar na mágica dos seus encantos. E quem deixaria de viver um romance em Paris?
 
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Viviane C. Moreira
Publicado no Amálgama