segunda-feira, 4 de julho de 2011

Se tudo acaba, o que fica?


Sandra Bagetti Menezes*
Foto: Miguel Aun.


Certa vez, em um programa de tevê, disse um médium, com entusiasmo: “Morrer não é vantagem!” Fiquei pensando na seriedade da fala bem-humorada desse homem… Ocorreu-me que muitas vezes a morte é aceita como alívio, bênção e até como o acontecimento de toda uma vida. Raro quem dê conta da morte simplesmente; da morte enquanto morte; mor-te.

Quantas são as histórias em que alguém conhecido e estimado é acometido por uma doença grave e falece, depois de muito sofrer? Então, aceitamos sua morte – por solidariedade, aliviados. E quando se trata da partida inesperada de alguém que muito amamos, chegamos ao absurdo de perdoar a morte, como se ela fosse uma bênção… Repetimos pra gente mesma que talvez a pessoa amada tenha sido poupada de um longo sofrimento, ao partir quando ainda havia esperança de cura, mesmo que remota. Fazemos esse jogo de cena com a morte pra suavizar a perda. Pra suportar nossa impotência diante dela, da morte.

Curioso, no entanto, quando encaramos a morte como um grande acontecimento. É o caso daquele sujeito que vive uma vida pacata, não é um cidadão notável, e a morte o leva ao zênite absoluto ou à celebridade. Esse sujeito – que está em extinção na era das redes sociais – pode ser um vizinho com quem topamos, diariamente, no elevador, no hall, na garagem do prédio, sem percebê-lo, porque não há nada demais nele. Nada extraordinário na vida dele; aliás, ele é um cara totalmente na dele. Tudo nele é tão normal, tão comum e habitual demais até que… ele morre em um desastre espetacular, virando herói ou simplesmente ficando famoso. A morte torna-se o grande acontecimento da vida dele. Então, ouvimos o espanto daqueles que relatam o episódio: “É, pra morrer, basta estar vivo!”

Inspiramos. Expiramos. Soltamos o ar, lívidos, com a presença da morte. Por alguns dias, e brevemente, pensamos nela, quando sentimos sua proximidade por obra do acaso – na vida dos outros. E mesmo sabendo que a morte é uma presença indesejada, mas há muito confirmada na festa da vida, insistimos em tapeá-la, como se ela não fosse chegar nunca, ou tão cedo, ou somente no momento certo. Assim, vamos levando nossa vidinha, acreditando, por vezes, que não vamos morrer. Os outros, tudo bem.

E ela chega, às vezes sem dar qualquer sinal. Sorrateiramente. Chega de uma vez, sem dar tempo pra um acordo. Sem dar tempo ao próprio tempo. Intratável. Avarenta. E sacana. Só mesmo Woody Allen pra enrolar a morte propondo-lhe uma biribinha, na qual ela foi vencida e posta pra correr – no conto “A morte bate à porta”, em Cuca Fundida (tradução de Ruy Castro).

A morte chega com muitas perguntas sem respostas. O que de nós permanece? A última palavra? O último olhar? O último gesto? O último suspiro? Filhos dão um conforto, em termos de continuidade. Amigos saberão nos deixar bem vivos na lembrança do que lhes demos fortuitamente; algo nosso, sem sabermos o quê. Aqueles que nos amam irão se lembrar de nós espontaneamente, com um sorriso secreto gostoso. Seremos refeitos por quem nos ama; reavivados no afeto depois da dor do luto. Mas o que fica da gente passa a ser do outro, que se apossa da nossa história. Deixamos pra quem amamos os bordados da nossa vida que não conheceremos… Renascemos na imaginação do outro? Talvez. Entretanto, a narrativa também não é mais nossa.

No filme Hanami – Cerejeiras em flor, o marido, após a morte súbita da mulher, busca encontrar dentro dele a mulher que ele não conheceu. Ele usa as roupas da mulher para que “ela” conheça a cidade de Tóquio e o Monte Fuji que, por anos, emolduraram sua fantasia. O marido deseja encontrar essa mulher, que ele não conseguiu conhecer, vestindo a fantasia dela, à qual ele foi indiferente – o casamento deles foi pleno de amor, mas muito fechado para a fantasia. Ele conta com a ajuda de uma desconhecida que se torna sua amiga e o leva ao encontro grandioso com a mulher, que ele não conheceu… E enquanto ele descobre o amor sublime que passa pela fantasia, seus filhos não ultrapassam as fronteiras do próprio imaginário em relação ao pai. Quando este morre, os filhos narram a história de um homem sobre quem eles supostamente tudo sabiam. Mesmo surpreendidos pela morte estranha do pai, eles não conseguem sequer pensar em um homem que se reinventou, com o renascimento da mulher na sua imaginação, na sua vida, nele mesmo. O homem que se tornou herdeiro de uma fantasia. E, por ela, foi salvo.

Ah, as palavras que gostaríamos de ouvir em nossos últimos instantes de vida? São as que não hesitaríamos em dizer a quem amamos nos seus últimos segundos de vida. A morte chega mesmo, mas não precisamos dela pra dizer eu te amo. Tampouco, pra nos despertar para a fantasia. Para a vida.



Viviane Campos Moreira.
Crônica publicada no Amálgama.

OBS.: para reprodução do texto em blogs, sites, portais, favor observar as normas do blog Amálgama. Favor citar os créditos como especificados no Amálgama. O Balaio da Vivi não autoriza a reprodução do texto de forma diversa ao que está regulamentado no blog Amálgama.

*Cerâmica com engobe.
Catálogo cedido pela artista plástica Liege Mendes.

2 comentários:

  1. Como creio que nada há depois da morte, não quero deixar palavras a dizer.

    ResponderExcluir
  2. Oi, Vanessa!
    Que bom vc dando um rolê pelo balaio!!!
    Melhor voltarmos pra VIDA, não é?
    Bjoca.

    ResponderExcluir