Talvez esse olhar para trás seja mais um item da lista de fim de ano. Talvez sim. Rever o que passou. O que o acaso nos trouxe, mas não percebemos. O que foi perdido por descuido ou por excesso de cuidado. Rever o que queríamos muito, mas não o alcançamos. O que não nos coube. O que nos coube, mas não nos demos conta disso. Por medo. Por covardia. Por babaquice. Algo que aconteceu conosco, com o outro, no mundo, na vida, para o melhor, para o pior. Acontecimentos. Singelos ou não. Uns nos tocam mais – por quê? Outros gravíssimos não nos dizem muito – por quê?
Talvez seja mesmo mais um item da lista de fim de ano olhar para trás. Rever e rever. A propósito, temos tempo pra isso? Tempo pra ver novamente com olhos generosos o que passou? Ainda temos tempo para a generosidade? Espaço? Corpo?
Circulou nas redes sociais, durante os protestos dos indignados nas ruas de Madri, fotos de uma manifestante, só de calcinha. Uma mulher, numa multidão de indignados, usou seu próprio corpo como meio (instrumento) de manifestação política. Com que, no entanto, ela estaria indignada? Houve quem estranhasse… No cartaz que a mulher trazia consigo estava escrito: Love Revolution. Mais estranhamento e também curiosidade, despertada pela própria imagem da mulher e do amor nessa cena recortada.
Fotógrafos ao seu redor flagraram um espetáculo à parte: um corpo na multidão chamou atenção pela sua beleza e por algo mais, além da forma e para além da estética. O corpo que se desprendeu da massa de indignados trouxe um discurso que falava de amor. Mas por que o amor? Paz, liberdade, paixão também estavam escritos no cartaz. E por que esse corpo protestava por uma revolução do amor?
Não é comum um corpo de mulher na rua cuja nudez parece adormecida. Uma nudez sem os apelos eróticos com os quais estamos acostumados. Sem as caras e bocas da sedução forjada dos corpos que vendem mercadorias. Um corpo de mulher apenas. Um corpo despido, de verdade, na rua – teria sido este o espetáculo?
Um corpo sem a sensualidade fabricada com a qual identificamos hoje o corpo feminino. Um corpo cansado disso, talvez. Um corpo à espera, talvez. Um corpo destoante. Ingrato. Um corpo de mulher que pede amor, nessa altura? Mais do que isso, um corpo que protesta por uma revolução que comece por ele. Um corpo marginal?
Um corpo quase morto. Passivo? Feminino. Um corpo que talvez reivindique a gratuidade num mundo em que falta tempo e espaço para ela. Em um mundo quase exclusivo de mercadorias. De fetiches industrializados. Jean-Claude Guillebaud (autor de A tirania do prazer) disse certa vez que as conquistas na sexualidade, após a revolução sexual, foram apropriadas e recicladas pela sociedade do dinheiro que transformou o sexo em mercadoria. Em matéria de sexo, tudo é permitido e também pago, segundo Guillebaud.
De volta à imagem, o que parece pedir esse corpo de mulher? Amor como última estância da gratuidade, talvez. Do encontro não marcado, talvez. Amor que às vezes começa pelo olhar. Pela conversa dos sentidos, e se inscreve no corpo feminino e nele tece histórias. Amor para celebrar a vida erótica que passa pelo corpo. Amor vivido no corpo. Amor que cria camadas de narrativas no corpo da mulher. Amor que liberta. Amor que privatiza. Amor que recobre o corpo. Amor porque simplesmente se quer amar – por que não? É proibido? Por que esse corpo parece desejar o amor? E isso o torna enigmático?
Talvez seja mais um item da lista de fim de ano, olhar para trás e rever cenas inéditas.
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Viviane Campos Moreira
Publicado no Amálgama
Também publicado no site Pragmatismo Político
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