domingo, 25 de setembro de 2016

Caranguejos & pedras


Caranguejo Overdrive 


Um corpo de homem debate-se. Joga-se contra o chão. Um corpo de homem bate na lama. Atira-se pra fora da lama. Com fome. Um corpo de homem que anda, mas não sai do lugar. No máximo de lado, esse corpo anda. Movimenta-se sem sair do lugar. Um corpo de homem que se projeta no ar. Com força. Com fome. Exausto, cai e fica no chão. Sem força. Um corpo de homem caído no chão do mangue. Entre nós: um homem e sua agonia. E o olhar de quem tem fome sobre nós.

Cosme, seu nome. Catador de caranguejos. Animais que vivem entocados em galerias subterrâneas. Longevos e territoriais. Caranguejos do mangue: espécie que se alimenta de dejetos orgânicos do mangue. Folhas em decomposição. Dependem da água. Seu território: ambientes aquáticos. Saem na maré baixa pra limpar suas tocas e buscar alimentos. Usam os olhos pra catar folhas. Vivem mais dentro do que fora. Mais acostumados com a profundidade que com a superfície.

Cosme também é do mangue. Sempre viveu nele, cavando buracos. Foi para a Guerra do Paraguai, mas não se adaptou à falta de lama. Para Cosme, "a guerra é branca". Não suportou sua brancura. Não se ajustou à guerra branca. Teve um colapso e voltou pro Rio.

Na volta, no entanto, Cosme não reconhece sua cidade. Não reconhece seu território. O que fizeram com seu território? Com sua cidade? De quem é o Rio de Janeiro hoje? 

Uma paraguaia conta pro Cosme o que aconteceu no Brasil. Uma mulher. Um corpo do território inimigo. Uma estranha. Uma paraguaia que lança sobre nossa política um olhar. Como se nós também precisássemos de seu olhar para reconhecer o nosso território. Como se nós precisássemos de um olhar estrangeiro sobre nós - e justamente de quem? 

Guerra branca. Areia sobre a lama. Mangue embranquecido. Aterrado. Desterritorializados: Cosme, a paraguaia e o caranguejo do mangue.

Enquanto a paraguaia tenta apresentar o caos a Cosme, o corpo de um homem que se perdeu na imagem de um corpo, em uma performance, ganha um outro corpo. O corpo de um homem que deixou de ser corpo porque se tornou imagem transforma-se em corpo. Não de homem, mas de caranguejo. Do mangue. Também conhecido como caranguejo-verdadeiro. Uma imagem de corpo de homem torna-se um corpo de caranguejo protegido por uma carapaça. Assim, um corpo de caranguejo sai da toca. Vem pra superfície. E nos observa. Um caranguejo-verdadeiro observa os homens, parafraseando Drummond.

Corpo de homem. Imagem de corpo. Corpo de caranguejo. Corpo. Carapaça. Pedra. Em Minas, na falta de caranguejos vivos, a produção usou pedras. Fomos convidados a imaginar as pedras movimentando-se como caranguejos. Um exercício e tanto.  

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Aquela Cia de Teatro - Rio de Janeiro
Direção: Marco André Nunes
Texto: Pedro Kosovski

A peça esteve em cartaz em Belo Horizonte nos dias 23 e 24 de setembro de 2016 no Sesc Palladium.

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2 comentários:

  1. Olhar e escuta atenta e sensível aos corpos,às falas, ao não dito, à agonia que escorre dos personagens. Bravo!

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  2. legal, Lili. mais legal que vimos ao vivo e em cores o caranguejo a nos observar...

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