Sandrine Kiberlain e Emmanuelle Devos
Como convidada, Simone de Beauvoir (Sandrine Kiberlain) entra na história de Violette Leduc (Emmanuelle Devos) no filme
Violette de Martin Provost. E, por acaso, se dá o encontro de Violette com o romance de estreia de Beauvoir: L’Invitée (A Convidada – 1943).
Violette impressiona-se com a espessura de um livro, um objeto sobre a
mesa na casa de um conhecido: “quem é essa Simone de Beauvoir que
escreveu um livro tão grande?” E assim como acontecem os melhores
encontros com os livros, A Convidada é descoberto pela
curiosidade de Violette. A partir desse encontro com esta obra de
Beauvoir, a sedutora Violette forja um encontro com a escritora.
Não deixa de ser curiosa a troca de papéis entre escritora e
personagem. Enquanto Xavière, no livro, é convidada para entrar na
relação de um casal, um homem e uma mulher, Simone é convidada, no
filme, para fazer parte de um outro triângulo amoroso: Violette, sua mãe
e Simone. Após a leitura do manuscrito de L’Asphyxie (A asfixia),
entregue por Violette, Simone aceita entrar na história em que Violette
estava presa, como uma criança que não aprendeu salvar sua própria
pele.
A asfixia (1946) é lançado pela Gallimard na Coleção Espoir,
recém-criada por Albert Camus. O livro é elogiado por Cocteau. Simone
lança, também pela Gallimard, O Segundo Sexo (1949), depois Os Mandarins (1954) com o qual ganhou o Prêmio Goncourt.
Ao longo do filme, Violette e Simone encontram-se e conversam sobre
seus projetos. Simone revela a Violette que estava se dando conta da
“montanha que precisava escalar” no livro que estava escrevendo sobre a
condição feminina – ela se referia ao O Segundo Sexo.
De certo modo, temos essa impressão. Logo no Sumário, percebemos que
estamos diante de uma montanha – menos pelo tamanho da obra (dois
volumes), mais pela amplitude temática e pela forma de abordagem dos
temas.
O primeiro volume Fatos e Mitos divide-se em Destino, História, Os Mitos e o segundo volume A experiência vivida, em Formação (Infância, que se inicia com a frase “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, A jovem, A iniciação sexual, A lésbica), Situação (A mulher casada, A mãe, A vida social, Prostitutas e cortesãs, Da maturidade à velhice, Situação e caráter da mulher), Justificações (A narcisista, A apaixonada, A mística) e A caminho da libertação (A mulher independente). Entre os dois volumes, a escalada de Beauvoir que escolheu falar sobre a condição feminina a partir do corpo.
Começa, então, o percurso de Beauvoir em O Segundo Sexo, a
partir do corpo de fêmea que “não constitui um destino imutável para a
mulher”. Para além do corpo que a faz ser “presa da espécie” e para além
da “servidão da fêmea” cuja libertação ocorre na menopausa, está o seu
“vir a ser”.
Todavia, para a mulher, a afirmação da individualidade, em termos de
transcendência, historicamente mais pesada do que para o homem, pode se
tornar mais pesada ainda, sobretudo quando ela nega seu destino
biológico. A família, a educação, os costumes e as crenças predeterminam
os papéis da mulher na sociedade.
À medida que Simone vai conhecendo a história de Violette, ela a
encoraja a escrever sobre sua sexualidade e sobre o aborto feito no 5º
mês e meio de gravidez, quando Violette estava casada. Como escritora
que “não se escondia atrás das palavras”, Violette poderia “prestar um
serviço às mulheres” – argumentava com assertividade.
Quando Simone incentiva Violette a “contar tudo” da sua história, podemos escutar Beauvoir em Os Mitos
(3ª parte do 1º volume) em que analisa as heroínas de Montherlant, D.H.
Lawrence, Claudel, Breton e Stendhal. Beauvoir aponta quem fala sobre
as mulheres: os homens através das heroínas. A mulher ideal detrás da
heroína revelaria ao homem algo sobre ele, mas a partir dele. Nos mitos
as mulheres não se revelam.
A escritora que analisa a função dos mitos em O Segundo Sexo convence
Violette a escrever sobre sua sexualidade. Pela própria narrativa, ela
poderia conquistar um espaço na literatura, inventando-o, em que a
mulher fala – e não os homens detrás dos mitos.
O livro
Ravages (
Destroços, de 1955; no filme,
Estragos)
de Violette Leduc em que ela fala sobre sua sexualidade “como ninguém
falou, com poesia, verdade e algo além” é lançado pela Gallimard, com
cortes. Mantida, no entanto, a parte do aborto. E, assim, uma mulher
pôde falar com sua própria voz sobre aborto na França. Finalmente,
Violette alcança seu público com o livro
La Bâtarde (
A Bastarda – 1964), com
prefácio de Simone de Beauvoir.
A personagem Violette é uma heroína de “carne e sangue”, como ela
diz, que faz uma bela travessia para se tornar escritora. Pela palavra
tão viva dentro dela, a fantasia, que a aprisionava, a libertara. Simone
sabia das possibilidades da força da palavra. E também sabia que a
libertação de Violette levaria tempo, como O Segundo Sexo precisaria de tempo para ser compreendido.
Em outro filme,
Os Belos Dias,
de Marion Vernoux, Caroline (Fanny Ardant), uma mulher de 60,
aposenta-se como dentista; não como mulher. Uma das coisas que pretende
fazer na aposentadoria é ler
O Segundo Sexo. Uma leitura tardia? Certamente, não. Nunca é tarde para
O Segundo Sexo.
***
Em 1971, Simone de Beauvoir redigiu o
Manifesto das 343, publicado em
Le Nouvel Observateur, assinado por ela, Violette Leduc,
famosas
e anônimas que declararam ter praticado aborto – proibido pelo Código
Penal de 1810 e decretado, em 1941, crime contra a segurança do Estado.
*
Após os movimentos pela descriminalização do aborto, a Interrupção
Voluntária da Gravidez foi legalizada pela Lei Veil em 17/1/1975 –
homenagem a
Simone Veil, Ministra da Saúde que
defendeu na Assembleia Nacional Francesa o projeto de lei pela legalização do aborto.
Nos EUA, a legalização do aborto ocorreu em 22/1/1973, no famoso Case Roe versus Wade,
em que a Suprema Corte Americana, por 7 votos a 2, julgou
inconstitucional a lei do Texas e, consequentemente, todas as leis
estaduais que restringiam, impondo condições, a prática de aborto nos
primeiros três meses de gestação.
A Corte fundamentou sua
decisão
no direito à privacidade (decorrente da Cláusula do Devido Processo
Legal da Décima Quarta Emenda da Constituição) que assegura a autonomia
da mulher com relação à decisão sobre a interrupção da gravidez sem a
interferência do Estado. Assim,
Roe vs. Wade tornou-se um marco na luta das norte-americanas pela liberdade sobre o próprio corpo.
No Brasil, em 12/4/2012, o Supremo Tribunal Federal (STF)
decidiu,
por 8 votos a 2, no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54) proposta, em 2004, pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), que a
interrupção terapêutica da gravidez de feto anencefálico não é crime.
Antes desta decisão, as mulheres precisavam de autorização judicial, que
poderia levar alguns meses, para realizar o procedimento.
O Código Penal de 1940, que tipifica o aborto como crime contra a
vida, não elencou a gestação de feto com má-formação e sem possibilidade
de vida fora do útero entre as exceções em que o aborto não é crime.
Foi preciso que o STF reconhecesse que não há conduta criminosa na
interrupção da gravidez de feto anencefálico; com impossibilidade de
vida.
A
sustentação oral
foi feita pelo advogado Luís Roberto Barroso, atualmente ministro do
STF, que não deixou de se referir à condição feminina que “atravessou
muitas gerações em busca de igualdade, em busca do reconhecimento de
seus direitos fundamentais” e ao direito da mulher de não ser tratada
como “um útero à disposição da sociedade”.
Estudos
da Fiocruz apontam que a tipificação do aborto no Código Penal
Brasileiro não impede sua prática. O aborto inseguro reconhecido como um
problema de saúde pública na Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento (Cairo/1994) é praticado, sobretudo por mulheres de
baixa renda. O abortamento é a 5ª causa de
morte materna no país.
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VIVIANE C. MOREIRA é advogada em Belo Horizonte (MG)
Blog: www.balaiodavivi.blogspot.com
Facebook: https://www.facebook.com/viviane.c.moreira.5
* O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir (História, vol. 1, p. 180-181 – Ed. Nova Fronteira).
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O texto
Simone de Beauvoir, a convidada de Violette Leduc foi publicado no Blog da REA (Resvita Espaço Acadêmico) em Ensaios sobre Cinema,
aqui: www.espacoacademico.wordpress.com/2015/09/16/simone-a-convidada-de-violette/