quinta-feira, 25 de julho de 2013

O silêncio dos ausentes

 
O filme de Marco Bellocchio, A bela que dorme, entrelaça personagens e suas histórias em torno da morte. No filme, a morte é uma metáfora que diz desses tempos em que vivemos mais adormecidos que acordados. Morte e vida que travam um embate complexo no nosso dia a dia. No nosso corpo. No nosso ânimo. Na nossa vontade de viver a vida que temos para viver e que nem sempre é mesmo boa.

No semblante dos personagens, um entorpecimento comum, acima do bem e do mal. Uma sonolência que remete à vontade de se desligar da vida que requer sentido. Viver porque se respira, no entanto, não significa viver e existir. Talvez falte sentido à vida vivida assim.

Há um fascínio no sono emblemático dos que respiram com a ajuda de aparelhos. Eles parecem gozar de um lugar privilegiado, livres do peso de se manterem acordados. A liberdade nem sempre desejada não pesa sobre seus ombros. Dormindo, escapam para algum lugar distante do mundo que nem sempre dá espaço e tempo para que se dê sentido à própria vida.

Mas que vida? A personagem que quer se suicidar (Maya Sansa) diz ao médico (Pier Giorgio Bellocchio) que quer salvá-la: “Você está morto, como eu.” Ele, firme no seu intento de salvá-la, lhe diz: “Você não tem dignidade.” Seria este um sinal de que a vida poderia fazer sentido? Saborear a vida sabendo fazer “arte” com a dor do desamparo. Aprender a sublimar – seria esta uma saída?

Em outro núcleo, uma atriz talentosa (Isabelle Huppert) adormece velando o sono da filha que está em coma. A vida na casa gira em torno da filha que dorme no quarto e que, um dia, a qualquer hora, de repente, poderá acordar. Enquanto a filha não acorda, a mãe também adormece. Abandona sua carreira, mas não deixa de representar. A morte torna-se sua paixão. O filho que quer se tornar ator, e se inspira na mãe, não reconhece essa mulher que sacrificou sua carreira e passou a viver exclusivamente à espera de um milagre. Para ele, ela cometera suicídio. Como despertá-la?

Um outro personagem, o senador Uliano Beffardi (Toni Servillo), do mesmo partido de Berlusconi, depara-se com a impossibilidade de exercer sua função, seguindo sua própria consciência. Ele votaria contra a lei que poderia impedir a suspensão do tratamento de Eluana Englaro, em estado vegetativo, há anos. Se ele votasse contra a lei, e consequentemente renunciasse, isso seria o fim da sua carreira política – como advertiu seu colega de partido.

O projeto de lei era do interesse de Berlusconi, tinha apoio da Igreja Católica, dos eleitores pró-vida e era contra a suspensão do tratamento de Eluana Englaro, que morreu na véspera de a lei ser aprovada pelo Senado. Mesmo não precisando mais fazer seu pronunciamento no plenário, com a morte de Eluana durante a votação, o senador decide renunciar. Sua renúncia não era estratégica, mas ética. Não fazia sentido ocupar um lugar no Parlamento que não o representava. A renúncia diz dele como sujeito que se recusa abrir mão da liberdade.

O caso Eluana Englaro que levantou o debate sobre a eutanásia, envolvendo o Vaticano, políticos, eleitores e a Justiça italiana, alinhava as histórias. Os personagens, em seu drama particular, acompanham o polêmico caso Eluana Englaro.

Beppino Englaro, pai de Eluana, após anos de luta na Justiça, obteve o direito de suspender a alimentação e a hidratação por meio de sonda nasogástrica da filha – em estado vegetativo por 17 anos – na Corte de Apelação de Milão em 2008. Na decisão, a Corte considerou o argumento do representante legal de Eluana (seu pai), no tocante à vontade da filha de rejeitar tratamento naquelas circunstâncias em que se encontrava – a legislação italiana reconhece o direito aos pacientes de recusar tratamento. O Ministério Público recorreu da decisão, mas o recurso não foi admitido pela Corte de Cassação. Foi mantida a autorização da suspensão da alimentação e da hidratação de Eluana Englaro.

A decisão provocou reação do Vaticano, do Senado, da sociedade italiana e gerou uma crise política entre Berlusconi e o Chefe de Estado Giorgio Napolitano que se recusou a sancionar o decreto-lei do Primeiro Ministro que tinha como finalidade proibir a suspensão de alimentação e hidratação de pacientes impossibilitados de se expressar sobre esta questão.

O filme não propõe um debate a favor ou contra o “direito de morrer”, embora fale do caso Eluana Englaro em contextos em que as fronteiras entre morte e vida se confundem. Talvez estejamos mais mortos que vivos quando falamos da vida. Talvez estejamos mais vivos que mortos quando falamos da morte. Quem sabe?

*
 
A Holanda foi o primeiro país da União Europeia a legalizar a eutanásia, seguida por Bélgica e Luxemburgo.

Na Suíça, o suicídio assistido (prática distinta da eutanásia) atrai centenas de pessoas de outros países, inclusive brasileiros.

Na França, o Presidente François Hollande “anunciou que vai promover um debate nacional sobre o tema e que seu governo irá propor uma lei que descriminalize a assistência médica ao suicídio.”

No Brasil, onde a eutanásia e o suicídio assistido não são permitidos, há restrições em relação à distanásia.

O novo Código de Ética Médica de 2010 “deu destaque à conduta anti-ética da distanásia, entendida como o prolongamento artificial do processo de morte, com sofrimento do doente, sem perspectiva de cura ou melhora”.

No Capítulo V, que trata da “Relação com Pacientes e Familiares”, de acordo com o art. 41: “é vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”.

Sobre a prática de distanásia, o parágrafo único do referido artigo diz: “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”.

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Viviane Campos Moreira
Publicado no Amálgama

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