Marc Chagall
Abaixo, um recorte de uma "discussão" entre Braga e Chagall em torno da cor azul.
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“- Não, estou cansado. Não quero pintar mais hoje.
E me diz que pintar é um ofício penoso.
- Não se pode fazer as coisas demasiado depressa: não se pode mesmo fazer depressa. Cada vez que começo um quadro, sinto que estou recomeçando um caminho difícil, eu diria mesmo desconhecido e perigoso.
Compreendo o que ele quer dizer, mas arranjo um jeito de observar que, entre os grandes pintores, ele é, certamente, um dos mais constantes; conta sempre a mesma história, não tem essa porção de ‘fases’ que outros atravessam.
- Não, eu não conto histórias. Você acha que conto sempre a mesma história? Que história?
- Posso ter usado uma expressão errada. Eu quero dizer que o senhor nunca se põe a fazer cubos, naturezas-mortas, paisagens, nem mulheres nuas de costas, nem qualquer outro motivo além desses que vêm naturalmente de sua infância ou da imaginação de sua família.
E cito seu arsenal de imagens: as casinhas tristes de aldeia, um poeta ou um burro tocando violino, um casal de noivos que esvoaça sobre o telhado, um velho judeu barbudo…
Diz que faz mais do que isso, mas – ainda que fizesse só isso? Leva-me a ver seus quadros, para diante de um e de outro, explica coisas. Tenho a ideia de chamar a atenção para a cara de um homem, toda azul, no meio de uma composição. Como há pouco falamos de Matisse e de suas cores, digo:
- É possível que Matisse pusesse ali um azul mais claro, mas é quase certo que poria mesmo um azul. Não acha isso?
Ele concorda. Para valorizar as outras cores em volta ou pelo menos não fazê-las perder seu valor, aquele pedaço de quadro fica bem sendo azul. Mas pergunta se não tenho outra explicação para a cara azul.
- Sim, essa cara azul sugere a ideia de que se trata de um homem que já morreu, embora apareça vivo no quadro. Qualquer coisa como um tio-avô ou um rabino… De qualquer maneira, dá uma expressão intensamente triste, como se o azul fosse um símbolo de distância ou de morte…
Ele não gosta da palavra símbolo, mas fica extraordinariamente contente com a impressão que o azul me deu. Seus olhos brilham de entusiasmo quase infantil.
- Mas, é isso, exatamente isso. Essa cor tem um valor psicológico, você compreende muito bem. Não simboliza nada, mas tem um valor psicológico.
- Sim, mas esse valor, como a própria cor, depende muito das outras cores. O senhor não poderia pintar…
Ele me interrompe:
- Está claro, sei o que deseja dizer. Pelo fato de dar um valor psicológico a uma cor não quer dizer que eu não pinte. Faço pintura. Seria mais fácil fazer pintura apenas com as cores, as linhas, os volumes. Mas querer dar a isso um valor de sentimento não é perder de vista os valores plásticos, pelo contrário, é estudá-los mais a fundo.
Senta-se em uma cadeira perto da escada, sem deixar de me olhar, de me falar:
- É muito difícil… e, sobretudo, inseguro. Essa menina – entrou na sala uma garota de quatro ou cinco anos – minha filha, ela tem muita segurança em tudo… no que é real, no que é imaginário. Eu não tenho segurança em nada, no meio de um quadro me pergunto, com aflição, se não estou falsificando o que eu queria fazer. Não é apenas uma questão de cores…”
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Recorte de Discussão com Marc Chagall
Rubem Braga em Retratos Parisienses
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