quarta-feira, 23 de março de 2011

O que as mulheres não querem?


Paula Souza Dias*
Foto: Miguel Aun.




Freud, diante do enigma do desejo feminino, formulou a pergunta: “Afinal, o que quer a mulher?” A histeria feminina foi acolhida pela escuta de Freud, que deu às histéricas o poder da palavra. E charme. Bastante charme.

“Impressionado com o relato do médico Josef Breuer sobre o tratamento de Anna O., que permitiu a Breuer inventar o método da catarse de rememoração sob hipnose, a cura pela palavra, Freud despertou para esta possibilidade. No final do século XIX, então estagiário no Serviço do Professor Charcot em Paris, Freud, desperto com o caso de Anna O., deparou com a histeria feminina ainda associada à feitiçaria e à possessão demoníaca. O neurologista Jean Martin Charcot estava interessado em descobrir uma base orgânica para a histeria e Freud e Breuer um sentido psíquico – Anna O. havia adoecido da doença mortal de seu pai, por amor a este.” (Malvine Zalcberg em Amor paixão feminina.)

De acordo com Malvine:

Freud, de volta a Viena, associou-se a Breuer e desta parceria resultaram os Estudos sobre a Histeria; o marco inaugural da psicanálise. Anna O. tornou-se a primeira histérica na história da psicanálise que reservou para a mulher um lugar privilegiado. Ela, Anna O., conduziu Freud e Breuer à descoberta de que o consciente não constitui o todo do psiquismo – nele há um aspecto inconsciente. Assim, a feminilidade e o inconsciente entrelaçaram-se na criação da psicanálise que, de certa forma, satisfaz uma das principais solicitações histéricas que é a de um saber sobre o sexo. Freud foi além de Breuer e Charcot reconhecendo, nos aspectos recalcados de Anna O., um componente sexual; descoberta que elucida a perspectiva psicanalítica de que a sexualidade transborda a relação sexual, alojando-se no campo do sintoma.

Outros tempos, outros sintomas, outras manifestações sintomáticas, “embora permaneça verdadeiro”, como diz Malvine, “que o que a histérica não consegue sustentar em sua existência, seu corpo o expressa.”

Nessa época dos estudos de Freud, as mulheres ainda tinham um único e imutável papel na sociedade. Em Moral Sexual “Civilizada” (1908), Freud critica a moral sexual repressora para as mulheres e “dupla” para os homens. As mulheres eram educadas de acordo com uma moral sexual baseada na “retardação artificial das funções eróticas” – fonte de sofrimento psíquico para elas. O desejo feminino não era bem-vindo. A “castidade feminina” que recompensava socialmente as mulheres com o lugar de esposas comprometia seu desenvolvimento psíquico, pois elas tinham que assumir o papel de esposa e a função de mãe, sem terem sequer se deslocado da posição de filha para a de mulher.

As filhas que se tornavam esposas também eram educadas por seus maridos. Eles – o pai e o marido – detinham o saber. A sexualidade feminina se constituía toda no discurso do outro: pai, marido, religião. E “toda” inserida no discurso do outro do patriarcalismo, ficava à margem da educação, cultura, linguagem, do saber permitido às mulheres. Supostamente, desejar um discurso próprio sobre a sua sexualidade era uma transgressão para a qual elas não estavam preparadas – podemos imaginar quantas mulheres sucumbiram na impossibilidade de falar da própria sexualidade.

Nossa sociedade é outra, diferente. Vivemos a liberdade sexual sem as restrições da moral sexual da época de Freud. As mulheres hoje têm múltiplos papéis; psiquicamente, não carregam mais o peso da armadura de um único papel, embora a sexualidade feminina siga o discurso de um outro que diz às mulheres em todos os lugares e a qualquer hora do dia, da noite, o que vestir, o que comer, aonde ir, com quem ir e até como “se dar bem”. A sexualidade feminina no século XXI é tão influenciada por padrões de beleza, saúde e sucesso que fica difícil de identificar os significados de cada um. Saúde, beleza e sucesso entrelaçam-se de tal maneira que se confundem, pois o que é saudável é belo e faz sucesso.

Deborah L. Rhode (autora de The Beauty Bias, 2010), no artigo “A injustiça da aparência” (The injustice of appearance, Stanford Law Review, 2009), aponta a aparência como um problema sério para as mulheres na contemporaneidade. Os investimentos na aparência somam bilhões por ano e homens e mulheres, mais as mulheres, evidentemente, investem tempo e dinheiro no que as deixa atraentes – impressionam as despesas (em bilhões) com cuidados e tratamentos para cabelo, pele, cirurgias estéticas, cosméticos, perfume; denominadas por Rhode “os custos da nossa preocupação cultural com a aparência”.

De acordo com Deborah Rhode, a aparência influencia na avaliação sobre competência e profissionalismo, sendo, portanto, associada a ambos. (Estudo da socióloga Catherine Hakim – Erotic Capital – confirma que pessoas com capital erótico, um conjunto de habilidades e atributos que as torna mais atraentes física e socialmente, têm mais oportunidades e ganham mais.) Rhode indaga sobre o que é ser atraente, esclarecendo que hoje este conceito provém de padrões predeterminados: a globalização dos meios de comunicação em massa e da informação tecnológica incrementou a cultura da aparência com padrões que definem o que é ser atraente.

A preocupação com a aparência começa cedo. As crianças vêm sendo ordenadas na cultura da aparência “naturalmente”, e as que não correspondem aos padrões de atratividade – crianças acima do peso ideal, por exemplo – têm apresentado dificuldades e problemas psicológicos. O estigma da obesidade persiste na fase adulta e mulheres acima do peso ideal são mais discriminadas que homens na mesma situação. Segundo Rhode, para muitas pessoas, a discriminação baseada na aparência parece justificável porque profissionalmente a aparência é relevante. E uma das formas mais comuns desse tipo de discriminação envolve o peso.

A advogada e professora da Stanford Law School defende uma proteção legal ou uma outra forma de reação social para a discriminação baseada na aparência por ela ser uma forma significativa de injustiça e por ofender os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Para Rhode, tal discriminação não deve ser tolerada. Ao contrário, deve haver um remédio legal para esta discriminação, pois quem possui características físicas imutáveis e impossíveis de se ajustarem aos referidos padrões ainda não pode contar com a proteção da lei. Rhode argumenta que quem fica fora dos padrões de beleza e atratividade, em geral associados a status, autoestima, competência, profissionalismo paga caro financeira e psicologicamente e quem investe tempo e dinheiro para obter os ganhos de uma aparência moldada por tais padrões também paga caro. Adverte: a sexualização da mulher valoriza o look em detrimento do mérito.

No teatro, a personagem Nora de Casa de Bonecas (1879), do norueguês Henrik Ibsen, ilustra o drama da mulher de sua época e também o da mulher de hoje. Nora se inquieta com o papel de boneca que lhe fora dado primeiro por seu pai e depois pelo marido. Ao lado de Helmer, Nora permanecia a mesma: boneca. Esposa, mãe e boneca. Sem direito a outro lugar no seu casamento, Nora parte em busca do seu desejo: tornar-se um ser humano; uma mulher. Ou mais de uma. Talvez muitas… Ou tão somente outra, tendo como ponto de partida o que ela não queria. Saber o que não se quer pode vir a ser o despertar para uma promessa – por vezes chegamos ao que queremos pelo o que não queremos. Contudo, entre a heroína Nora e a mulher de hoje há muitas calorias a mais no processo de subjetivação.

Tanto a mulher da época de Freud quanto a mulher de hoje precisam do olhar, da palavra do outro, sobretudo “das palavras de amor de um homem na constituição da sua subjetividade”, segundo a psicanalista Malvine Zalcberg. É preocupante que a sexualidade feminina – “uma construção complexa que envolve amor, desejo e gozo, a partir da falta” – sofra tanta influência desse outro da contemporaneidade que joga pra não perder. Mas as mulheres costumam ser astutas, com photoshop ou sem photoshop

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Viviane Campos Moreira.
Publicado no Amálgama.

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*Queima em alta temperatura - forno a gás.
Catálogo cedido pela artista plástica Liege Mendes.

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