O ministro da Saúde José Gomes Temporão, comentando sobre os dois anos de vigência da Lei Seca (Lei n. 11.705 de 19 de junho de 2008), disse que a sociedade brasileira, quando a lei foi criada, “precisava de um pai e este surgiu na figura da lei”. O comentário do ministro sobre a necessidade de criação da referida lei confirma reflexões e estudos sobre a questão do pai na atualidade. Fala-se em crise, declínio e ausência da função paterna. Fala-se também em crise de autoridade dentro e fora das fronteiras do espaço doméstico. O que significa criar uma lei quando a sociedade precisa de um “pai”?
Segundo Lacan, o pai tem uma função simbólica na constituição do sujeito. O pai é o terceiro que intervém na relação mãe-filho e no amor da mãe pelo filho e do filho pela mãe. Entre mãe e filho o amor é “perfeito”, supostamente completo. O ditado “coração de mãe sempre cabe mais um” não serve para o pai. Este é um estranho na “díade mãe-filho”. Estrangeiro. É um terceiro na relação com a função de “barrar” a completude do amor entre mãe e filho e salvar ambos dos perigos desse amor “perfeito”.
Amor e perfeição não combinam – mas por que tanto a buscamos no encontro amoroso? Todos nascemos e somos filhos de um amor “perfeito” que nos engana com a ilusão de completude. Onde não falta nada é preciso intervir. Nem mesmo o amor materno pode escapar da imperfeição, da falha, da falta – condição de todo ser humano. É preciso pontuar o amor que se pretende perfeito: o nosso primeiro amor, imperfeito em suas medidas. É preciso que nele falte algo. O pai, ou um outro que faça a intervenção, ensina ao filho e à mãe que não há completude nem mesmo no primeiro amor. Todos somos filhos da incompletude. Assim, esse pai instaura uma outra ordem na relação mãe-filho. Pela Lei do Pai, o filho pode se libertar do desejo da mãe e separar o seu desejo do desejo de sua mãe. O filho pode se constituir desejante e se responsabilizar pelo seu desejo – “desejo que vem da falta”.
A frustração, liberdade e responsabilidade integram a separação que ocorre entre o filho e a mãe. O filho apartado do desejo da mãe pode assumir o próprio desejo. Desloca-se, portanto, para a posição de sujeito desejante. Quem deseja tem que bancar o desejo. Tem que pagar pra ver. Pra ser. Para se tornar algo a partir do que se deseja. Pra viver bem com o que falta, pois “onde há falta, há desejo.” Poder se constituir sujeito desejante – não há nada mais gratificante para o ser humano. Poder ser iluminado pelo desejo, não temer sua luminosidade e deixar-se iluminar.
Com a Lei do Pai, temos que aceitar a incompletude. E quando a Lei é simbolizada como interdição isso é bom para a sociedade, pois “o pacto edípico garante o pacto social”. (Hélio Pellegrino: Pacto social e pacto edípico.) O sujeito desejante e bem instruído na frustração, liberdade e responsabilidade pode se tornar um indivíduo que respeita o outro, as convenções, os contratos, os costumes, a lei. Salvo da ilusão de completude e dando conta da sua incompletude ele é inserido na cultura aprendendo sublimar suas frustrações e desviar sua agressividade – podendo direcioná-la, por exemplo, para alguma atividade artística, intelectual ou outra que o recompense. Assim, ele é bem instruído no amor que também frustra. Perfeito. Está pronto para o exercício da alteridade, tornando-se capaz de suportar as restrições impostas pela vida em sociedade e pela cultura.
Quando uma lei é criada por causa da ausência da função paterna, significa dizer que há uma falha na transmissão das proibições no âmbito das relações entre pais e filhos. As restrições operam-se no inconsciente, na infância, quando o pai, ou um outro que o represente, as introduz e a criança registra internamente a obediência e a submissão à autoridade paterna. Assim, a criança aprende renunciar. Aprende que não é possível se satisfazer sempre. A criança é preparada para suportar a insatisfação.
Onde sobra satisfação, falta restrição. O direito tem um papel ordenador muito maior em uma sociedade que sofre com a falta de boa educação, com a deficiência no recalcamento das proibições. Quando é preciso criar uma lei porque falta o “pai”, invoca-se o direito para responsabilizar – há carência de interdição no âmbito da autonomia privada. O direito passa a ser invocado cada vez mais para regular a falta do “pai”.
Nesses dois anos de vigência da Lei Seca podemos comemorar sua eficácia na redução dos índices de mortes no trânsito. Não devemos, no entanto, nos orgulhar com o que há por trás das estatísticas. Liberdade, responsabilidade, educação e cultura entrelaçam-se entre a lei e o pai mais do que imaginamos.
Viviane Campos Moreira.
Artigo publicado no Amálgama
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