domingo, 1 de março de 2015

Ele, o corpo



O cineasta alemão Werner Herzog dirigiu o documentário From one second to the next (De um segundo para outro) sobre acidentes de trânsito em que os motoristas, no momento da ação, teclavam mensagens no celular. O documentário integra a campanha “It Can Wait”, desenvolvida com a finalidade de tornar motoristas conscientes dos riscos de ler e de escrever mensagens ao volante.
 
O título do documentário, que remete ao presente-futuro, não é menos persuasivo do que as imagens e os depoimentos dos familiares das vítimas e dos motoristas que causaram os acidentes. E não deixa de ser impactante a eloquência do corpo das vítimas que, depois de um instante, não é mais o mesmo corpo e, desse instante em diante, talvez não seja mais o corpo amado.

Difícil não ouvir as imagens desse instante. Difícil aceitar o tempo desse instante. Difícil deparar com o futuro nesse instante.
 
Um corpo que tecla com outro – ação entre dois corpos com imagens – colide com um corpo. No entanto, este corpo não reproduz uma imagem – é um corpo estranho que está fora do enquadramento imagético da virtualidade. Nesse instante, o real descortina-se no que não é irreal: o corpo.

A fixação no presente sem futuro condensado no instante, que caracteriza o tempo da virtualidade, perde sentido no choque entre os corpos. O tempo fracionado entre a mensagem recebida e a enviada, que marca o ritmo da instantaneidade na virtualidade, não explica a chegada acidental do futuro. O instante seguinte se faz presente numa outra fração do tempo.
 
O futuro concretiza-se no corpo da vítima em um instante fora do tempo da virtualidade. Fora da noção instantânea do presente sem futuro do corpo que tecla. Num segundo, no instante seguinte, o presente torna-se o que não existe: o futuro. E o que é real parece irreal: um corpo sem imagem atravessado pelo futuro que chega violentamente num instante. Futuro que não foi inventado. Não foi desejado nem sonhado. Um futuro real demais. Seco. Desértico.

O belo filme Ela, de Spike Jonze, um dos melhores do ano, se passa em Los Angeles num tempo em que o virtual interage com o real em perfeita harmonia – um futuro próximo ou ainda distante?
 
Theodore (Joaquin Phoenix) apaixona-se por um Sistema Operacional (S.O.) que não possui nenhuma imagem, somente uma voz – da Scarlett Johansson.
 
Quando Theodore adquire o S.O., ele dá informações ao sistema da empresa de softwares sobre a sua relação com a mãe e escolhe uma voz feminina que se torna uma presença quase física na sua vida. Embora o S.O. chamado Samantha se queixe de não ter um corpo, ela se torna um corpo. Por que Samantha se torna um corpo para Theodore?

Em um encontro dele com a ex-mulher para assinar os papéis do divórcio – encontro que ele havia adiado – ela fica curiosa para saber como era a mulher com quem ele estava saindo; supostamente, ela queria descobrir o que essa mulher tinha que ela não tinha. Theodore diz uma das suas qualidades: amar a vida. Depois, naturalmente, conta-lhe que Samantha era um S.O.
 
Além de ter uma voz sensual, o S.O. era muito divertido e apaixonante. Como não se apaixonar por uma voz que se torna um corpo de palavras? Um corpo que reveste de fantasia o corpo do amado.
 
Ainda que a mulher por quem Theodore apaixonara-se fosse um pouco ou muito idealizada, a relação deles não era fake. E apesar de não ter um corpo de mulher, Samantha inventou um corpo que marcou profundamente os corpos de Theodore: o erótico, o afetivo, o da linguagem e o do homem. Eles se tornaram íntimos: amigos e amantes.
 
Theodore viveu uma bela história de amor com esse corpo de palavras que o ajudou a transcender o Theodore da dor do divórcio. Com o amor de Samantha, ele aprendeu a guardar o que é gostoso guardar de toda história de amor.

E o que o adorável S.O. teria para dizer às mulheres?

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Viviane C. Moreira
Publicado no Amálgama
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