sexta-feira, 14 de março de 2014

A feminilidade em cena

 
Cate Blanchett, em discurso de agradecimento ao Oscar 2014 de melhor atriz, por sua atuação no filme Blue Jasmine de Woody Allen, disse que filmes sobre mulheres dão certo. O filme tem ficado em cartaz por várias semanas em salas de cinema espalhadas pelo mundo.

Como Jasmine, outra personagem sedutora tem nos levado ao cinema: Joe, a ninfomaníaca de Lars von Trier. Já Meryl Streep e Julia Roberts, que contracenam em Álbum de Família (John Wells), levam-nos ao cinema para assistir ao drama de uma família de mulheres marcadas pela infelicidade que passa de mãe para filha. Tentamos entender a relação complicada entre a mãe (Meryl Streep) e as filhas.

Os filmes Álbum de Família, Blue Jasmine e Ninfomaníaca são sobre elas, as mulheres.

A personagem de Meryl Streep no filme Álbum de Família é viciada em pílulas. Dona de um humor sinistro, impiedosamente, usa a língua para ferir o outro – teria sido esta uma forma de se vingar do câncer na boca?

A língua de Violet (Streep), que fere com muita crueldade, também foi ferida. É uma língua maligna. Talvez ela carregue a língua ferina da mãe. A palavra na sua língua também machuca. Como uma navalha afiada faz sangrar o que há de pior no outro. Palavra que abre feridas que não se cicatrizam porque a língua que fere persiste como um tumor maligno. Não há palavra de amor que resista ao desamor que passa pela língua da mãe para a língua das filhas.

Foi assim com Violet e a irmã. Ambas se tornaram herdeiras da língua que fere. Aprenderam usar a palavra para enfraquecer o outro. E não desistiram de levar a sério o poder da palavra que fere. Não se permitiram abrir-se para uma outra palavra; a palavra de amor que vem do outro. Assim, não se perderam para depois se encontrarem novamente na língua do amor.

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A filha mais velha (Julia Roberts) volta à casa de Violet, sua mãe, que a acusa de não ter sido grata ao amor do pai, de quem ela era a filha preferida. Todavia, Violet reconhece na filha a sua força e a presença da filha forte em casa traz certo conforto à mãe.

Por sua vez, a língua da personagem de Julia Roberts não poupa o marido nem a filha. Seria ela, das três filhas de Violet, a herdeira da língua que fere? E talvez por isso temesse o retorno à casa da mãe? Que reencontro ela temia?

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Jasmine (Blanchett), desde criança, foi marcada para se destacar. Linda e amada como filha única pela mãe, embora tivesse uma irmã, preparou-se para viver num conto de fadas: uma vida de sonhos a se realizar com muito luxo. Jasmine conseguiu alcançar esse lugar para poucas mulheres e uma posição de destaque na alta sociedade, garantida por um marido milionário.

Mas nem tudo na vida de Jasmine é puro glamour, ainda que ela estivesse no lugar e no papel para os quais se preparou. O que faltaria a Jasmine, embora ela tivesse tudo? O que Jasmine queria mais do seu marido? Ser, entre suas mulheres, a única amada?

Joe (Stacy Martin e Charlotte Gainsbourg), a “ninfomaníaca”, descobre sua vagina quando criança e inventa brincadeiras para se divertir com esta descoberta. O pai escuta do lado de fora a diversão da filha e de uma amiguinha no banheiro. A mãe não presta atenção. Distante e indiferente, nada dizia à filha sobre sua beleza, sua esperteza, sua inteligência; muito menos sobre seu corpinho de menina. A filha é marcada pela palavra do pai, que é um homem da ciência – um médico que a leva para passear e aproxima a filha da natureza e seus mistérios.

Joe cresce e decide se livrar da virgindade e passa a viver sua sexualidade como uma brincadeira. Não quer saber do amor. Quando sua amiga lhe diz que “o amor é o ingrediente secreto do sexo”, Joe estranha esta fala e prossegue sem o amor.

A Joe o amor não interessa. O seu corpo e o sexo sem amor interessam-lhe. Preencher todos os seus buracos interessa-lhe, como bem disse Eliane Brum. O destino de Joe? Não sabemos, mas o filme (1ª parte) inicia-se com um corpo de mulher no chão; abandonado. Um corpo de uma mulher adulta que pode não ter sido marcado pela delicadeza dos dizeres do amor.

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Curiosamente, o título do filme foi escrito com um “o” aberto. Sugere, como foi dito em muitos comentários sobre o filme, o órgão feminino, mas também, um parêntese – o título pode ser uma legenda para a palavra ninfomaníaca; uma legenda para a etiqueta posta sobre a personagem. Entretanto, nesta etiqueta fez-se um parêntese que deixa aberto o que não se pode definir totalmente. A palavra ninf()maníaca, com parênteses dentro dela, não diz tudo.

Nas histórias contadas nos três filmes, ainda que algumas personagens não encontrem outras saídas, a feminilidade está para cada uma como algo a ser (re)inventado com criatividade, a partir das marcas de feminilidade da mãe, da irmã mais velha, da irmã mais bonita e sortuda, pois a criatividade vai além das etiquetas, como ensinam a psicanálise, a literatura e a arte. A criatividade é a fresta silenciosa que abre múltiplos caminhos.

A premiada atriz Cate Blanchett acertou: adoramos filmes sobre mulheres.

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Publicado no Amálgama

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