sexta-feira, 23 de março de 2012

Separados, enfim


 
Não, eles não se entendiam mais. Falavam ao mesmo tempo. Juntos. A fala de um atropelava a do outro. A pausa para a escuta tinha dado lugar ao silêncio do ressentimento. O silêncio do naufrágio. Algo havia escapado deles irremediavelmente. Em algum lugar, em algum ponto – entre eles. Algo além do amor. Além deles mesmos. Algo que aparentemente não era motivo para um divórcio. Não era razoável.

Simin, a mulher, desejava um mundo novo. Um outro país onde pudessem viver uma outra vida. Diferente. Um outro tempo. O futuro. Nader, o marido, não podia deixar seu país, naquele momento, e abandonar seu pai doente. Simin pressionava Nader. Acusava-o. Dizia que o pai doente era uma desculpa para ele não enfrentar o desafio de uma vida nova, talvez. Para ele, aquela não era a hora de se separar do pai. Não era certo. Nader acusava Simin de desistir fácil dos problemas. Desejo? Fuga? Desculpa? Decência? Tempo de impasse.

O pai de Nader estava com Alzheimer e, quando Simin sai de casa, Nader passa a cuidar do pai doente, da filha de onze anos, da casa, mesmo não apostando na decisão da mulher, sobretudo na sua determinação. Ele acreditava na volta de Simin. Numa reconciliação?

Com a vida e a casa em desordem, Nader assume a responsabilidade e as tarefas que antes eram da mulher. Não se sai bem. Atrapalha-se. Exaspera-se. Perde o controle, mas resgata com o pai doente uma intimidade estranha. O corpo do pai doente não era o mesmo corpo do seu pai, mas um outro. Um corpo fragilizado de um homem doente no corpo do pai amado. Dois tempos. Passado. Presente. Quando Nader cuida do corpo do pai doente, ele se depara dolorosamente com o seu amor pelo pai. E reencontra, na sua impotência em relação à doença do pai, o seu amor ao pai. Dando banho no pai, ele redescobre a medida do seu amor. O corpo do pai permanece o corpo amado, com as marcas do tempo e da história de afeto entre pai e filho. O corpo amado do pai. O corpo do filho no corpo do pai. Este é um momento duro de cumplicidade amorosa entre filho e pai – alheio ao afeto de Nader pela mulher e pela filha. É uma outra história de afeto que passa pelo corpo. Desculpa? Decência? Afeto vivido na carne. Sem tempo para reprises. Tempo de despedida.

Nader acalma a filha dizendo-lhe que a mãe voltaria. Inverdade? Esperança? A filha tenta reconciliar os pais, ora conversando com um, ora com outro – no fundo, tentando entender quem tinha razão? O divórcio se confirmando, ela teria que ficar com um dos dois. Dores da separação. Onde os pais se perderam no casamento? Por que o divórcio? Não é assim racional como parece. A filha descobre isso. Três tempos. Passado. Presente. Futuro. Tempo de crescer.

Este pode ser o roteiro de muitas separações. Talvez por isso nos identifiquemos tanto com o drama de Nader e Simin – personagens do filme iraniano A Separação. Tão distantes e tão próximos de nós vivendo o momento da separação. O fim. O início de um novo tempo. Tempo de reinvenção.

Não foi muito diferente com a personagem Isadora, do romance Canteiros de Saturno, de Ana Maria Machado. Depois de conquistar seu próprio tempo, Isadora alcança o nome do seu casamento: vazio. E se assusta: “Quando pensou nisso, se assustou com a palavra vazio. Mais uma vez, essa deformação profissional. Não podia impedir, trabalhava com isso, sua função era analisar textos, ver o que eles escondiam e o que revelavam. E nunca antes tinha percebido que seu casamento podia ser descrito com a palavra vazio. Um sentido tão cheio.” Depois de descobrir a palavra que nomeava seu casamento, Isadora divaga: “Podia escolher o vazio, pensou. Agora, consciente. Sabendo que era vazio. Mas que era o preço a pagar para manter os filhos assim, tranquilos, docemente adormecidos, sem pesadelos, nem choros, nem sofrimentos. Ao lado do pai e da mãe. Sem dilaceramentos. Talvez não fosse um preço alto. Não estava apaixonada pelo marido, não vivia nenhuma dessas histórias de que sempre ouvira falar e que transformam um casamento num inferno. Não chegava nem a ser um purgatório. Apenas uma vida terrena, com os desgastes corriqueiros e o distanciamento crescente.”

Tempo de coragem. Desejo encoberto na trama de meias-verdades. Preso na rede voraz do tempo. Em algum momento, ele fala mais alto. Hora da verdade. Não há culpa. Há o desejo. Difícil de negar. Difícil de negociar. Tempo: presente.


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Viviane Campos Moreira.
Publicado no Amálgama.

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